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A importância do cuidado – não apenas como ato técnico, mas como expressão de compaixão, atenção e entrega

A importância do cuidado – não apenas como ato técnico, mas como expressão de compaixão, atenção e entrega

Gates afirmou recentemente que nem todas as profissões sofrerão com o incremento cada vez mais globalizado das inteligências artificiais. Atividades que envolvem conhecimento, experiência, criatividade e compaixão dificilmente serão superadas pelos algoritmos. E, entre essas, uma aparece em destaque na lista do bilionário: o cuidador. Afinal, cuidar de alguém não se resume apenas a saber administrar remédios na hora certa, limpar um corpo debilitado ou ajudar na locomoção. Implica um investimento intenso de atenção durante muitas horas do dia ou da noite, o que exige uma dose muito forte de abnegação.

E aí, onde sobra tempo para os próprios cuidados?

A falta de uma reflexão séria e comprometida com essa questão manifesta-se no quadro comum e aflitivo do adoecimento do cuidador: estresse – e, no limite, burnout –, depressão, ansiedade, fobias, esgotamento das energias vitais, fundamentais para a existência, e que são concentradas no outro que necessita. Por isso, quando dizem que o cuidado do outro é, antes de tudo, uma doação, há muito de verdade nisso. O perigo é o cuidador ficar em um estado negativo sem ponto de retorno. Aí será ele quem precisará, urgentemente, de cuidado.

Essa realidade é muito comum nos ambientes não especializados e, quase sempre, pobres e muito pobres. Nos hospitais que contam com equipes multidisciplinares que se revezam nos cuidados e limitam seu envolvimento à sua dose diária possível, a situação é um pouco melhor. Mesmo assim, é comum o estresse tomar conta dos profissionais dessa área, principalmente pela falta de condições mais adequadas para realizar o trabalho que eles sabem ser possível.

Já nas áreas periféricas dos grandes centros urbanos, em ambientes nos quais nem sempre é possível construir uma rede de proteção estável – seja pela necessidade de mobilidade constante, seja pela violência que elimina e afugenta –, a prioridade de cuidar recai, muitas vezes, sobre as costas de alguém que já precisa de cuidados. Crianças, por exemplo: é comum meninos ou meninas de 12, 13 anos assumirem a tarefa de cuidar de parentes mais velhos, comprometendo seu tempo de aprendizado e brincadeiras em longas jornadas de atenção desinformada. Por outro lado, muitas vezes são os idosos que precisam cuidar de jovens vítimas da violência ou de doenças mal diagnosticadas que afetam sua saúde física e mental.

A rede de saúde pública, focada nos atendimentos especializados, é ainda muito deficitária, com tempo de espera que supera facilmente os cem dias. Há falta de leitos, e menos de 10% dos hospitais no Brasil possuem equipes de atendimento paliativo. Segundo dados da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), das mais de 5 mil unidades hospitalares, apenas 177 equipes existiam em 2023.

Diante disso, frente ao outro que apela pela nossa ajuda, o que fazer?

Essa escassez, seja no ambiente hospitalar ou, principalmente, nas casas e barracos das áreas degradadas das periferias, cria duas tristezas: a do doente e a do cuidador. Apesar de seus esforços, de sua dedicação e de sua entrega em trocar suas próprias chances de buscar algo melhor para si pela permanência ao lado de quem perdeu parte ou toda a autonomia, nem sempre o resultado pode ser considerado uma vitória a ser festejada.

Mesmo assim, a ajuda vem. E ajudar implica um potencial de compaixão que máquina nenhuma é capaz de replicar. Como explica a filósofa Martha Nussbaum, a compaixão implica três reconhecimentos: o de que o sofrimento do outro é real e significativo; a crença de que a pessoa que sofre não merece essa dor ou dificuldade; e o reconhecimento de que o sofrimento do outro é nocivo ao seu florescimento e desenvolvimento humano, afetando também sua própria vida e bem-estar.

Por isso, fazemos o que, muitas vezes, está além do nosso alcance; tiramos forças de onde não imaginamos que existam; resistimos para além de nossas capacidades.

Imagina se dividíssemos essa tarefa ética entre mais pessoas? Imagina se, desde cedo, fôssemos educados para o cuidado e para a compaixão? Os doentes sofreriam menos, e os que cuidam correriam menos riscos de adoecer.

*Daniel Medeiros – Advogado e especialista em Filosofia Contemporânea pela PUCPR. Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR. Pós doutorando em Bioética pela PUCPR. Professor da Especialização em Filosofia do Direito, da Escola de Direito, e Especialização em Neurociência e Educação, da Escola de Educação e Humanidades da PUCPR. Autor da Coluna Cuidados Humanos, da revista Humanitas. Articulista do Portal Neo Mondo.

E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com

Instagram: @profdanielmedeiros

foto de daniel medeiros, autor do artigo Quem cuida de quem cuida?
Daniel Medeiros – Foto: Divulgação