Pesquisa identifica aumento da incidência de infecções transmitidas por animais

Trabalho propõe novas diretrizes para mapeamento de riscos zoonóticos e foi decisivo na formulação de plano estadual para saúde e clima
Pesquisa realizada em parceria com a USP acaba de propor um novo olhar sobre as zoonoses de maior incidência no mundo, como a dengue, a malária e a leptospirose. A revisão sistemática de 312 artigos publicados entre 1997 e 2023 mostrou que mais de 90% dos resultados obtidos mundialmente desconsideram pelo menos um indicador epidemiológico para os riscos de contração de infecções transmitidas por animais. No Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, a identificação dessas lacunas auxiliou no desenho de um plano de adaptação para os novos desafios climáticos no estado de São Paulo.
O estudo, divulgado na última segunda-feira (23) pela revista científica One Earth, do grupo Cell Press, questiona a eficácia das políticas públicas baseadas em estudos anteriores. “Mais da metade dos artigos na área não avaliam o cenário inteiro”, afirma Raquel Carvalho, primeira autora do artigo e professora do Instituto de Biociências (IB) da USP. Ela aponta três indicadores cruciais para identificar a fração da população e as áreas com maior risco de contração e transmissão de doenças: a exposição aos patógenos, os perigos imediatos – focos de Aedes aegypti, por exemplo – e a vulnerabilidade socioeconômia e ambiental da população. Os resultados revelam que apenas 7,4% dos métodos analisados integraram os três indicadores.

Legenda
“Se ignorarmos as condições de vida da população, estamos subestimando os riscos epidemiológicos”, alerta. A pesquisadora ressalta que, para orientar efetivamente os processos de tomada de decisões políticas, as avaliações de risco devem ser integradas ao desenvolvimento de programas públicos de vigilância e controle zoonótico. A unificação é uma estratégia para garantir que fatores biológicos e socioeconômicos forneçam informações para mitigação da probabilidade de contágio.
Raquel também chama atenção para a distribuição das pesquisas ao redor do mundo. “A maior parte dos trabalhos está no Hemisfério Norte, principalmente nos Estados Unidos. Os trópicos, que são áreas geralmente associadas à maior concentração e diversidade de patógenos, são sub-representados.” A professora explica que essa configuração revela um viés geográfico que se contrasta com o risco de zoonoses em países tropicais.
Sem produção de conhecimento específico, a formulação de políticas públicas pode não ser eficaz no combate a surtos epidemiológicos. O desfecho é o surgimento de doenças negligenciadas: infecções que possuem pouco investimento em pesquisa e controle, e que geralmente recebem pouca atenção da mídia e da sociedade.

Recalculando a rota
Os resultados do artigo foram aplicados no desenvolvimento do Plano Estadual de Adaptação e Resiliência Climática (Pearc) paulista. Coordenado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil), o projeto foi lançado no início do mês de junho. Atenta ao fatores epidemiológicos, a junta de pesquisadores e governantes envolvidos no projeto propôs um método para identificar o risco de infecções transmitidas por animais. O esforço tem como objetivo avaliar riscos sanitários associados às alterações ambientais, bem como sua distribuição espacial e populacional.
Raquel explica que transformações ambientais, como as mudanças climáticas e o uso intensivo do solo, estão associadas à alta do número de infecções zoonóticas. Ela alerta que a ênfase na dimensão ecológica da epidemiologia, com foco nos perigos imediatos e nas características do meio, negligencia as dimensões humanas do problema. Componentes urbanos, físicos e sociais também devem entrar na conta, e a restrição das variáveis analisadas pode ocasionar ruídos na construção de políticas públicas. Por exemplo, uma área com muitos mosquitos, mas boa infraestrutura sanitária pode ser mais segura que uma comunidade periférica com focos de proliferação menores – paradoxo que, muitas vezes, é ignorado. Esse é um dos problemas que o Pearc se propõe a corrigir.
O plano para mitigação das arboviroses – infecções viróticas transmitidas por insetos – é resultado do trabalho conduzido pela equipe do Biota Síntese. O grupo, sediado no IEA, integra pesquisadores de diversas áreas para traduzir dados científicos em políticas públicas. Vinculado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o núcleo reuniu especialistas em ecologia, saúde e gestão ambiental para desenvolver, em parceria com o governo paulista, o primeiro plano estadual a combinar indicadores ecológicos, epidemiológicos e sociais no enfrentamento de zoonoses. Raquel destaca a importância da aproximação entre administradores públicos e a produção de ciência robusta. Segundo ela, é a aplicação do estudo que materializa seus resultados e que promove impacto duradouro na política.
Modelos epidemiológicos ignoram variáveis sociais
O artigo traz um dado preocupante: 75% das doenças infecciosas emergentes são zoonóticas, ou seja, transmitidas por animais e insetos. “Com o aumento da temperatura, a presença de vetores – animais como mosquitos, carrapatos e roedores – também aumenta. Quase 80% dos transmissores estudados se proliferam em climas mais quentes”, alerta Raquel.
Entender a relação entre o ambiente e emergências de saúde pública é fundamental, mas não o suficiente para implementar medidas efetivas na prevenção e controle de epidemias. Dos modelos analisados, mais de 70% contavam apenas com variáveis ambientais para explicar a distribuição e a presença de vetores e hospedeiros. Essa “quase-exclusividade” chamou a atenção da autora, uma vez que o desenho da pesquisa tinha como objetivo determinar o papel das componentes epidemiológicas no surgimento e na disseminação de zoonoses.
“52% dos trabalhos analisados consideram apenas os perigos imediatos, e isso não basta”, afirma Raquel. Como exemplo, a professora ilustra um cenário agrícola: “O hantavírus é um patógeno comum em roedores do meio rural – como uma leptospirose do campo. Mas, se não houver exposição do trabalhador agrário aos perigos, isso não vai se transformar em doença”, explica. “Em casos como esse, a estimativa da ocorrência da doença pode estar errada.” Ao todo, 77% dos modelos analisaram o perigo imediato.

Os demais componentes biológicos – a vulnerabilidade e a exposição – foram negligenciados na maior parte dos trabalhos. Do total, como única variável ou combinados, eles foram considerados em apenas 26 e 41% dos modelos, respectivamente. A avaliação de 68% dos trabalhos inferiu que o risco geral é diretamente proporcional ao perigo imediato. Raquel contesta essa simplificação e afirma que o estudo de fatores ambientais ou da presença de agentes transmissores em detrimento de uma análise socioeconômica pode estar relacionado a falhas no controle de proliferação de zoonoses do sistema público de saúde. Seu artigo, então, propõe uma avaliação da efetividade dos indicadores associados às variáveis epidemiológicas.
Como resultado, a bióloga obteve a eficácia das variáveis mais utilizadas para a descrição dos riscos gerais, da exposição e dos perigos. A vulnerabilidade aparece apenas como indicador – a posição socioeconômica de certa comunidade não depende apenas da exposição a patógenos, dos perigos imediatos ou do ambiente, os fatores estudados.
Os dados mostram quais são os parâmetros que mais afetam os componentes do risco final. A análise, restrita às dez doenças mais estudadas, revela que, embora as pesquisas foquem em variáveis ambientais e perigos imediatos, fatores socioeconômicos e comportamentais são igualmente decisivos, apesar de menos estudados. Raquel destaca o papel das mudanças climáticas na avaliação dos riscos epidemiológicos: “A temperatura e a cobertura vegetal são os principais indicadores para o aumento das populações dos transmissores”, afima. O padrão é observado, mas não é restrito a vetores de doenças urbanas comuns, como a leptospirose e a dengue.
A correlação entre os três componentes epidemiológicos é nítida. O perigo imediato e a exposição possuem uma relação de feedback positivo – elas se retroalimentam; enquanto a vulnerabilidade de uma comunidade define o seu contato com agentes transmissores de doenças zoonóticas. Densidade e condições habitacionais e sanitárias são os principais fatores em jogo. Essa perspectiva orienta a construção de métodos mais verossímeis, capazes de prever surtos em um contexto de mudanças climáticas e pressão antrópica.
Os caminhos para saúde pública
“São Paulo tem cerca de 60 mil quarteirões, e eu tenho dados para 30 mil deles”, explica a pesquisadora sobre as complicações enfrentadas no estudo de problemas epidemiológicos específicos. Atalhos e modelos numéricos são essenciais para passar pela malha fina da biologia. Os resultados do artigo ajudam a balizar o que deve ser feito para extrair a maior quantidade de informação útil do banco de dados recortado por vácuos informacionais. Mas as lacunas não devem ser tratadas apenas como questões metodológicas.
Raquel explica que muitas doenças contagiosas transmitidas por animais, como a esporotricose, não possuem notificação obrigatória. Ou seja, por mais que sejam tratadas, as ocorrências não são completamente registradas pelos órgãos sanitários ou informadas para os governantes – o que dificulta a gestão da saúde pública e impossibilita o estudo de muitos patógenos. “[Agentes políticos] nos perguntam ‘por que não trabalhar com as doenças negligenciadas?’ Bom, e existem dados?”, questiona.
A professora ainda defende que seja feita uma ciência robusta a partir das informações limitadas. Um método unificado e eficiente de pesquisa “pode auxiliar na formulação de um melhor planejamento urbano”, explica. Para Raquel, tomar um passo para trás e recalcular a rota para a produção de conhecimento é a chave para fazer a diferença enquanto pesquisadora.
Como próximo passo, sua equipe está preparando modelo para estudar os perigos impostos pelo mosquito Aedes aegypti. Espera-se entender melhor a epidemia da dengue no município de São Paulo e minimizar os riscos para a população local.
O artigo Unpacking the risks of zoonotic and vector-borne pathogen transmission to humans in the context of environmental change pode ser lido aqui.
Mais informações: raqueluly@gmail.com, com Raquel Carvalho
*Estagiário com orientação de Fabiana Mariz
**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado