A COP30 confirmou o que já sabíamos: só os pobres querem e podem salvar o planeta. Artigo de Jelson Oliveira
“São os povos tradicionais, os países pobres, aqueles que menos contribuíram para a crise, que demonstram real capacidade de enfrentá-la”, escreve Jelson Oliveira, professor do Programa de Pós-graduação e do Curso de Graduação em Filosofia da PUCPR, diretor-fundador da Cátedra Hans Jonas da PUCPR.
Segundo ele, “não se diz isso por algum tipo de romantismo ingênuo ou coisa que o valha, mas porque são esses grupos que ainda mantêm vínculos estreitos com a terra, com a água, com o ritmo da vida e com a responsabilidade intergeracional. Mas sobretudo, porque eles são as principais vítimas, os mais vulneráveis e aqueles que guardam os saberes e conhecimentos, os afetos e as disposições capazes de alterar o rumo das coisas. Essa gente que chegou dançando, descendo das altas águas, com chocalhos, cocares e sambas, trouxe os motivos da esperança”.
Eis o artigo.
Entre os mais de cinco mil indígenas que participaram da COP30 e caminharam na Marcha dos Povos que reuniu 70 mil pessoas pelas ruas de Belém na manhã do dia 15 de novembro, circulava uma frase que mais parecia um presságio: “Nós somos a solução”. No fim da conferência, podemos concluir que essa afirmação expressa uma grande verdade: o evento que começou com enormes expectativas, acabou por frustrar as organizações e pessoas que lutam, diariamente, em defesa do planeta. As duas questões apontadas como as mais urgentes (maiores investimentos dos países ricos para o financiamento climático e um acordo para pôr fim aos combustíveis fósseis) nem sequer foram mencionadas no documento final, enquanto a alternativa lançada pelo governo brasileiro, limitada, já pelo nome (“Mapa do caminho”), não passou de mero voluntarismo de alguns países, encabeçados pela Colômbia.
O certo é que o lobby do petróleo e do agronegócio travou avanços reais nesses campos e condenou as gerações do futuro a viverem em um mundo mais quente, ecologicamente mais pobre e socialmente mais desigual. Na COP30 os países ricos, prisioneiros de sua ganância produtiva e da manutenção de um sistema que explora a natureza até o limite, mostraram sua incapacidade e até mesmo sua indisposição para resolver o problema climático. Nunca aquele “realismo capitalista” de Mark Fisher foi tão evidente: para os ricos, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.
Quem foi a Belém, contudo, não saiu surpreendido. Faz tempo que os ricos do mundo dão provas de suas intenções. E faz tempo que nós sabemos disso. Não foi por acaso que, às vésperas da ECO92, Hans Jonas se mostrou tão cético em relação a esse tipo de evento, afirmando que “quem não se encontra diretamente ameaçado não luta por uma revisão verdadeira do modo de viver”. O problema é precisamente esse: os países ricos do Norte Global sentem menos os efeitos da emergência climática e têm mais condições de enfrentá-las, enquanto os países pobres do Sul Global sofrem as “triplas injustiças”, pois embora figurem entre os menos responsáveis pela gênese da crise climática (uma vez que historicamente foram excluídos dos supostos benefícios do progresso que a produziu) são os primeiros, e de modo mais devastador, a experimentar seus impactos. Além disso, veem suas desigualdades estruturalmente aprofundadas, pois não dispõem de meios para implementar processos de recuperação e adaptação adequados. Estamos diante do problema da justiça climática, portanto, que exige (precisamente por questões de justiça) que os países ricos estejam prontos para o sacrifício, não em benefício dos países pobres apenas, mas do planeta como um todo e, inclusive, de si mesmos. Jonas também é enfático nesse ponto: “se não estivermos prontos para o sacrifício, haverá pouca esperança”. E sem disposição para o sacrifício, os debates como os que ocorreram em Belém não passam de um “discurso suspeito” e de uma “conversa entre privilegiados”.
A COP30 foi um desses momentos em que vimos a ilusão do progresso ganhar novo vigor e expressão, como uma espécie de fetiche. Mas foi também em Belém que vimos aparecer todas as pautas, causas e povos que mostraram a sua contradição e ineficácia, seja porque estavam ali os rostos que têm sido excluídos do atual modelo de desenvolvimento, seja porque o próprio ambiente urbano testemunhava que as obras do evento não chegaram às populações periféricas que vivem à beira dos esgotos e de lixões abertos, se movimentam em ônibus lotados e sufocantes e penam a falta de saúde e educação de qualidade. Belém foi a prova de que os homens ricos do Norte não querem renunciar ao modelo de mundo que eles fabricaram historicamente e que, no fundo, sua ganância os torna cegos para as vítimas do aquecimento global, que estarão sempre aqui, nas periferias do mundo, morrendo aos milhares. Belém (e todas as cidades pobres do mundo) nos mostra, todos os dias, que a justiça climática não pode ser alcançada “dentro do sistema econômico atual e de suas estruturas de governança”.
Essa tensão inescapável, própria do sistema capitalista fundado no extrativismo, na exploração dos combustíveis fósseis, na desflorestação e na exploração dos bens naturais, só pode ser resolvida com a mudança da atual dieta socioeconômica. Como já apontou Jonas, essa é a hora mais difícil, porque chegou o temo da contenção, da modéstia e da renúncia, precisamente quando alcançamos um maior poder e quando os tempos parecem mais promissores. Se os países pobres devem ainda alcançar níveis decentes de bem-estar para sua gente, esperar-se-ia dos países ricos uma maior capacidade de frear seu afã desenvolvimentista: Hans Jonas lembra que “se o tema é a modéstia e a renúncia, nos países ocidentais industrializados temos uma grande margem de manobra, inclusive um decrescimento considerável nos deixaria em um nível bastante elevado”.
Ora, o problema é que as economias ricas estão fundadas na lógica da exploração da natureza e é essa lógica que elas se recusam a renunciar e, como consequência, nos colocam a todos num jogo suicida cujas evidências são as catástrofes cotidianas que afetam desigualmente as populações ao redor do mundo. Como todos sabemos, o atual modelo de crescimento exige sempre mais destruição e exploração da natureza e, assim, só uma estabilização da economia e a imposição de um limite econômico aos países ricos poderia nos salvar de um perverso fim. Na medida em que fizeram a COP30 fracassar nos seus objetivos mais urgentes, esse modelo econômico nos empurra para o abismo. Jonas, nesse caso, se aproxima de Fisher e se pergunta: “Por que não é possível uma determinada estabilização da economia? Por que o produto nacional deve crescer sempre ininterruptamente?”. Seria preciso impor às corporações e aos governos “demandas contrárias aos seus próprios mecanismos existenciais: expansão, maximização do lucro e dos benefícios”, declara Jonas em outra entrevista. Seria necessário, por óbvio, que os ricos aceitassem diminuir a produção e o consumo para abrandar a exploração da natureza: “Nosso apetite pelo consumo não deve mais crescer constantemente, como tem acontecido até agora. Precisamos adotar um modo de vida mais moderado. Se não estivermos prontos para o sacrifício, haverá pouca esperança”. Como lembramos em trabalho anterior, a posição de Jonas articula uma crítica à “vontade de ilimitado poder” e ao necessário reconhecimento dos limites dos recursos naturais disponíveis para sustentar a expansão ilimitada do crescimento econômico: “a questão a ser feita aqui não é o quanto o homem ainda é capaz de fazer – nesse ponto pode-se estar otimista com o potencial prometeico –, mas o quanto a natureza pode suportar”. E esse, não há o que se possa dizer em contrário, é uma obrigação dos países ricos, já que “não se pode ir aos necessitados e famintos desta terra com não importa qual pretensão exagerada e dizer-lhes que devem renunciar”.
São os povos tradicionais, os países pobres, aqueles que menos contribuíram para a crise, que demonstram real capacidade de enfrentá-la. Por isso, não por acaso, o traço mais marcante da COP30 veio dos movimentos sociais e eclesiais, das ONGs e, principalmente, das populações tradicionais. Eles mostraram o que nós já sabíamos: diante do colapso climático em curso, somente os pobres (povos tradicionais, comunidades periféricas e países historicamente explorados) parecem realmente dispostos e capazes de salvar o mundo. Não se diz isso por algum tipo de romantismo ingênuo ou coisa que o valha, mas porque são esses grupos que ainda mantêm vínculos estreitos com a terra, com a água, com o ritmo da vida e com a responsabilidade intergeracional. Mas sobretudo, porque eles são as principais vítimas, os mais vulneráveis e aqueles que guardam os saberes e conhecimentos, os afetos e as disposições capazes de alterar o rumo das coisas. Essa gente que chegou dançando, descendo das altas águas, com chocalhos, cocares e sambas, trouxe os motivos da esperança.
Não deixou de ser notável que essa esperança tenha nascido no coração da Amazônia, onde se encontraram esses povos todos. O clima que envolveu Belém durante as duas semanas do encontro, com calor denso, chuvas vespertinas e uma mistura humana plural, ajudava a lembrar o sentido profundo daquele território. A floresta se apresentava ao mundo e, de certo modo, ao próprio Brasil, que pouco conhece a Amazônia real, em cores, rostos, penas, folhas e narrativas que revelavam sua força e vulnerabilidade. A cada tarde de chuva atravessada por um calor quase insuportável, tornava-se evidente que a estabilidade climática global depende diretamente da capacidade humana de proteger esse bioma e aprender com aqueles que o habitam há milhares de anos.
Um dos grandes ensinamentos desse evento foi o de que adaptação não é concessão estatal, mas um direito humano fundamental: populações inteiras têm direito a condições mínimas para enfrentar tempestades, secas, enchentes e deslocamentos já em curso. Ainda assim, a frustração foi visível, porque as medidas aprovadas foram importantes, mas insuficientes diante da emergência. Se antes se falava de um máximo de 1,5º de aquecimento, termina-se o evento admitindo pelo menos 2º até o fim deste século – para a catástrofe de diferentes habitats naturais. Quem decide, afinal, não ouviu as vozes das vítimas, que embora estivessem sentadas à mesa das negociações em maior número do que no passado, não detêm o poder de decisão. O chamado “multilateralismo” continua sendo parcial, capturado por interesses econômicos que prevalecem sobre a vida. Por isso, voltou-se a defender a necessidade de reformar profundamente o sistema decisório internacional, indo além da lógica dos Estados e abandonando a exigência paralisante de consenso. O tempo das negociações infinitas precisa acabar! Não é justo esperar mais dez ou quinze anos para que governos “decidam decidir”, enquanto se sacrificam vidas que não podem esperar.
Isso não significa que a COP30 tenha sido um fracasso total. Eventos como esse, apesar de lentos, têm contribuído para desacelerar o processo de destruição, forçando governos e empresas a dar razão à ciência, explicitar compromissos, criar mecanismos de transparência e reconhecer a urgência climática. Mas também deixam claro que não há saída real enquanto insistirmos no mesmo modelo civilizatório que produz desigualdade e devastação. A justiça climática, como venho insistindo, exige redistribuição de poder, reparação histórica e reconhecimento da centralidade das vozes marginalizadas.
Ao final, a COP30 nos devolve uma verdade tão simples quanto difícil de aceitar: não basta esperar por acordos internacionais ou pela boa vontade das potências econômicas. É preciso transformar radicalmente a maneira como vivemos. A solução passa por estilos de vida mais simples, frugais e responsáveis, nos quais o consumo deixa de ser medida de valor e a vida humana e extra-humana volta a ocupar o centro das decisões. Só assim poderemos, enfim, imaginar um futuro possível para todos.
Diante disso, permaneçamos inconformados/as:
• continuemos nos recusando a aceitar passivamente a lógica da depredação ambiental como única forma possível de viver neste planeta;
• mantenhamos em todas as nossas narrativas, o assunto em primeiro plano;
• sustentemos em todas as nossas ações cotidianas, a inquietação ética diante das persistentes injustiças climáticas;
• renovemos constantemente a necessidade de questionar, propor e transformar, rompendo com a indiferença diante do sofrimento dos seres vivos;
• recusemos a resignação e o fatalismo e celebremos sempre de novo o desejo de mudança real e radical nos modos de vida. Trata-se, no fundo, de continuar sonhando, sem naturalizar os fatos e recusando-se a aceitar o mundo tal como está;
• mantenhamos uma postura crítica, ética e politicamente ativa, valorizando as inúmeras práticas de enfrentamento e mitigação que se espalham ao redor do mundo e que independem das grandes decisões políticas.
A verdade é que o tempo não pertence mais à diplomacia, mas às florestas que queimam, aos rios que secam, aos animais que se extinguem e aos humanos do futuro, que dependem das atitudes de quem precisa, agora, fazer o que deve ser feito.
