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Gatos são mais letais para invertebrados do que se imaginava, aponta estudo brasileiro

Gatos são mais letais para invertebrados do que se imaginava, aponta estudo brasileiro

Análise inédita realizada por pesquisadores da Unicamp revela alta diversidade de pequenos artrópodes caçados por felinos nas cidades

A convivência entre gatos domésticos (Felis catus) e seres humanos (Homo sapiens) já ocorre há cerca de 10 mil anos, e essa longa parceria ajudou a espalhar esses animais pelo planeta. Isso, porém, trouxe um impacto ecológico expressivo: os felinos são predadores eficientes, capazes de dizimar aves, répteis, pequenos mamíferos e até invertebrados.

Estudos globais sugerem que menos de 6% das espécies consumidas pelos felinos são insetos, mas há cada vez mais indícios de que essa porcentagem pode estar subestimada. Parte do problema está na utilização de métodos tradicionais, que dependem da análise de fezes, bem como ao fato de os gatos nem sempre comerem todos os bichos que caçam.

Foi diante dessas limitações que pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) recorreram a uma investigação baseada em milhares de vídeos e fotos que donos de gatos postam diariamente nas redes sociais. A abordagem segue uma tendência crescente na ciência chamada iEcologia, que transforma registros digitais, como posts no TikTok, em dados ecológicos úteis.

Os resultados encontrados pela equipe renderam um artigo científico, publicado nesta quarta-feira (19) na revista Insect Conservation and Diversity.

Cardápio variado

Entre março e abril de 2024, os pesquisadores vasculharam 12 mil fotos no iStock e 5.150 vídeos no TikTok. Ao todo, eles analisaram 17.150 registros, dos quais 550 mostravam, claramente, gatos caçando, matando ou consumindo artrópodes.

Para evitar imagens manipuladas ou fora de contexto, eliminou-se as postagens com interferência humana ou em ambientes não urbanos. As buscas foram feitas em português, inglês e espanhol, usando combinações de palavras como “gato caçando insetos”, além de nomes de grupos específicos, como “grilo”, “barata”, “abelha” e “aranha”.

A partir dessa estratégia, o levantamento identificou 14 ordens diferentes de artrópodes — um número maior do que o registrado em muitos estudos tradicionais. Suas presas mais comuns foram:

  • Orthoptera (gafanhotos, grilos): 20,7%
  • Hemiptera (inclui cigarras): 14,5%
  • Blattodea (baratas e cupins): 14,4%
  • Lepidoptera (borboletas e mariposas): 11,5%
  • Coleoptera (besouros): 9,1%
  • Hymenoptera (abelhas e formigas): 8,5%
  • Odonata (libélulas): 7,1%

Outros grupos, como Araneae (aranhas), Diptera (moscas) e Mantodea (louva-a-deus), apareceram com menor frequência. Scorpiones (escorpiões) e Dermaptera (tesourinha) surgiram apenas uma vez.

Leticia Alexandre, primeira autora do artigo e graduanda em biologia, conta que o uso das redes foi crucial para o projeto. “O mais empolgante é que conseguimos revelar um impacto que vinha sendo negligenciado pela literatura científica”, destaca em comunicado.

“Documentamos artrópodes que nunca haviam sido mencionados em artigos acadêmicos como presas de gatos”, acrescenta o professor Raul Costa-Pereira, que assina a produção como coautor. “As mídias sociais mostram um lado da ecologia urbana que passava despercebido.”

Impacto silencioso

Ao comparar os dados do novo estudo com grande parte das revisões globais sobre a dieta de gatos, a dupla encontrou divergências notáveis. Como, por exemplo, o fato de Coleoptera ser o grupo mais frequente na literatura tradicional, mas aparecer pouco nos vídeos. Da mesma forma, Hemiptera e Blattodea, pouco citados nas pesquisas, são extremamente comuns nas redes.

Para os autores, essas diferenças sugerem que os métodos tradicionais capturam o que os gatos comem, enquanto as redes sociais mostram o que eles matam. As duas informações são distintas, mas se mostram igualmente importantes para a compreensão dos comportamentos típicos desses animais e de seus impactos nos ecossistemas.

Frequência relativa de consumo de diferentes ordens de artrópodes por gatos com base em registros de fotos e vídeos em duas plataformas online, iStock e TikTok (a); e comparação entre a frequência (%) de registros para cada ordem de artrópodes registrados em nosso estudo com base em postagens em mídias sociais versus aqueles compilados por pesquisas anteriores (b) — Foto: Letícia Alexandre; Raúl Costa-Pereira

Frequência relativa de consumo de diferentes ordens de artrópodes por gatos com base em registros de fotos e vídeos em duas plataformas online, iStock e TikTok (a); e comparação entre a frequência (%) de registros para cada ordem de artrópodes registrados em nosso estudo com base em postagens em mídias sociais versus aqueles compilados por pesquisas anteriores (b) — Foto: Letícia Alexandre; Raúl Costa-Pereira

Graças às análises, os especialistas perceberam o fato de os gatos domesticados caçarem tantos artrópodes como algo preocupante. Isso porque esses invertebrados desempenham funções essenciais na natureza, como polinizar plantas, decompor matéria orgânica e controlar populações de pragas.

Além disso, muitos desses grupos caçados ainda enfrentam declínios globais acentuados. “Entender como espécies invasoras, como os gatos, contribuem para esse declínio é um dos grandes desafios da conservação hoje”, afirmam os pesquisadores no comunicado.