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Biodiversidade desconhecida começa a ser revelada nas diferentes alturas da floresta

Biodiversidade desconhecida começa a ser revelada nas diferentes alturas da floresta

Do solo até o alto das árvores, os insetos amazônicos exibem uma profusão de formas, cores e modos de viver, que os cientistas só agora começam a descrever

Do alto de uma torre de 40 metros em uma reserva nas proximidades de Manaus (AM), o biólogo Dalton Amorim se assombra. “O que vemos aqui é de tal beleza e complexidade que explode o coração. Temos 360 graus, até o limite do horizonte, de floresta primária pura, com todos esses tons de verde-limão, verde-acinzentado, verde-alaranjado, verde-amarronzado, verde-escuro… Cada copa tem um formato diferente. É uma riqueza brutal e linda, até difícil de explicar para quem não pode vir aqui.”

Essa está longe de ser sua primeira incursão na Floresta Amazônica ou subida na torre da Reserva ZF-2, do Inpa, mas desta vez o professor da USP partiu de Ribeirão Preto (SP) com o objetivo de encerrar a primeira etapa de um trabalho sobre a biodiversidade de insetos da Amazônia, acompanhado pelo Jornal da USP. O entomólogo (estudioso de insetos) tem várias décadas de experiência no laboratório e em campo, mas nunca deixa de se surpreender com o que encontra. Nem poderia. O que os cientistas já conhecem da fauna amazônica, especialmente dos insetos, são algumas gotas d’água num oceano de espécies, habitando cada canto da floresta e cada altura – daí a importância da torre e outras técnicas inovadoras de coleta.

Expandir o conhecimento sobre os insetos da Amazônia está, na verdade, no centro dos planos de um megaprojeto que o professor sênior coordena, o BioInsecta – e que é parceiro de outra enorme empreitada, o BioDossel. Este último tem sede no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e é liderado pelo professor da instituição José Albertino Rafael.

Os espécimes com que os projetos vão trabalhar alcançam números grandiosos, na casa das centenas de milhares a serem identificados e estudados, com a perspectiva de várias novas espécies sendo descritas. “A gente não pode fazer isso com meia-dúzia de pesquisadores de uma ou de duas instituições. Precisamos reunir a força taxonômica do País, e inclusive a de outros países, para que a gente consiga chegar ao elemento essencial da pesquisa, que é a espécie”, diz Rafael.

Amorim estima que a proporção de espécies ainda desconhecidas em relação às conhecidas pode ser de 90% a 98% da fauna de insetos da Amazônia. Um estudo dele e de colaboradores, publicado em 2022, aponta que mais de 60% da biodiversidade de insetos na Amazônia vive acima do solo, indo de 8 a 30 metros de altura, no chamado dossel da floresta.

Graças à parceria com o Inpa, a coleta não se limita a apenas um ponto da floresta. A partir de um experimento anterior, coletando espécimes de maneira estratificada nas alturas de 8, 16, 24 e 32 metros, os pesquisadores verificaram que a fauna que vive na parte alta da floresta (dossel) é muito diversa da fauna que habita a área onde hoje normalmente são feitas coletas, o solo – onde há mais facilidade de acesso. “Foi um resultado surpreendente e isso nos estimulou a desenvolver um projeto mais consolidado com coletas temporalmente mais extensas”, conta Rafael.

Um inseto marrom em um galho verde cercado de outros pequenos e brancos que parecem ser formas juvenis da espécie

Um inseto assemelhado a um grilo marrom sobre o dedo de uma pessoa

Uma abelha em primeiro plano com a cara no buraco da colméia

Um inseto de corpo comprido azul e asa transparente está sobre uma folha

Uma mosca de olhos vermelhos em primeiro plano

Um inseto de cabeça esverdeada e corpo comprido, asas para frente

Assim, o trabalho recente aconteceu durante 14 meses em três interflúvios, que são as áreas limites entre bacias hidrográficas, separadas por grandes rios (Amazonas, Madeira e Solimões). O professor do Inpa explica que o objetivo é conhecer a fauna que habita cada ponto e também ver o quanto há de “turnover faunístico”, ou seja, de substituição de fauna entre um ponto e outro.

“A partir do momento em que a gente tiver esses dados, poderemos começar a extrapolar os resultados para a Amazônia como um todo e sensibilizar os órgãos financiadores da importância de realizar coletas em outros locais. Esse tipo de coleta agora está centrado nas proximidades de Manaus, com um ponto fora do triângulo que é no Maranhão, em Gurupi, onde a gente conta com a parceria da Universidade Estadual do Maranhão. Mas a Amazônia é imensa”, reitera.

O conhecimento gerado sobre as espécies não ficará restrito aos taxonomistas, que identificam e classificam os seres vivos. “Os dados de biodiversidade e estrutura vertical da fauna de insetos vão alimentar estudos de ecólogos da floresta por muitos anos. Esses dados também vão ser usados por engenheiros florestais e cientistas da conservação para decisões na proteção da floresta”, exemplifica Amorim em entrevista anterior a Leandro Magrini no Jornal da USP.

Inovação nas armadilhas

“Os insetos são extremamente importantes devido à sua interatividade com a dinâmica da floresta e também com as populações que vivem nela, mas desconhecemos a maioria das espécies e sua distribuição, principalmente os que vivem no alto das árvores – o lugar menos coletado e estudado na região amazônica e em outros biomas”, diz o técnico do Inpa Francisco Felipe Xavier Filho – o Chico, enquanto trabalhava na retirada de uma armadilha.

Coletar além do nível do solo exige um grau maior de complexidade. O pontapé inicial para esta amostragem da vida nas alturas se deu na torre ZF-2. “Essa torre foi construída numa cooperação com o Japão no final da década de 1970, especialmente para medidas meteorológicas. E desde o começo da década de 1980, os pesquisadores do Inpa têm coletado insetos dessa floresta, em várias alturas. Isso já foi mostrando uma diversidade muito especial no dossel da Amazônia”, relata Dalton Amorim. Em 2017, José Albertino Rafael e seu grupo colocaram armadilhas de interceptação de voo encaixadas em vários pontos: no solo, a 8, 16, 24 e a 32 metros. “Foi aí que a gente viu realmente o impacto que um projeto do tipo poderia ter”, ressalta Amorim.

Armadilha de vários extratos tipo mosqueteiros pendurada numa árvore alta

Homens desmontam estrutura entre árvores

Homem barbado, de lenço no pescoço e e lanterna na cabeça olha o pote de vidro com os insetos coletados

Pequeno macaquinho sobre uma árvore

Homem grisalho de perfil sorri, segura e olha o pote de vidro com insetos em um líquido

Um bugio sobre uma árvore

Um fungo sai de uma árvore

 

Nesse primeiro piloto, com a torre metálica, os cientistas praticamente não tiveram problemas. Mas com os dois novos megaprojetos, o objetivo passou a ser comparar diferentes áreas, e construir torres em cada uma delas teria um custo extremamente alto. “Então tínhamos que desenvolver uma estratégia para coletar de maneira estratificada, e para isso nós buscamos um desenho, rabiscamos muitos papéis, e fomos ao campo testar a elevação das armadilhas”, relembra Rafael.

Os pesquisadores buscaram as árvores emergentes, aquelas que crescem e se abrem somente acima dos 30 metros, chegando até cerca de 60 metros de altura (mas com alguns registros de árvores com até 80). Elas passaram a fazer o papel da torre, com as armadilhas ancoradas nos seus galhos mais fortes. “Após conseguir passar uma corda nesses galhos, levantamos as armadilhas e elas ficam suspensas em intervalos padronizados, de sete em sete metros, chegando até os 28 metros, que é a altura média do dossel na Amazônia Central”, detalha o professor do Inpa.

Ao bater na tela das armadilhas, os insetos caem em coletores com álcool absoluto – para preservar o DNA – pendurados nas pontas delas. Depois de duas semanas, quando chega o momento da coleta, os frascos ficam repletos de moscas, mosquitos, grilos, pernilongos, louva-a-deus, gafanhotos, mutucas e mariposas, entre outros. São centenas de milhares de exemplares que terão um pedaço do DNA sequenciado e seguirão para uma enorme rede de especialistas em cada um dos grupos de insetos. Eles vão identificar os que forem de espécie conhecida, e descrever aqueles cujas espécies forem novas. “A gente está coletando em uma escala em que nunca ninguém coletou e nossos resultados vão ser inéditos na literatura científica”, anima-se Amorim.

Mas como conhecimento vale muito mais quando compartilhado, um artigo recém-publicado pelos pesquisadores inclui uma espécie de manual de construção da cascata de armadilhas. No texto, eles ressaltam que o sistema pode ser replicado em todo o mundo, em qualquer floresta, para explorar a diversidade de insetos e sua dinâmica.

Biologia molecular: os desafios do sequenciamento

Como sequenciar tantas amostras num espaço de tempo relativamente curto, seja nos laboratórios do BioInsecta, em Ribeirão Preto, ou nas instalações do Inpa, em Manaus? Quem explica é Miriam Silva Rafael, pesquisadora do Inpa há mais de 30 anos que integra o BioDossel com foco no sequenciamento de DNA.

“A nossa meta a atingir é de 320 mil espécimes sequenciados. Ela é pautada no barcode [código de barras], usando um método bem eficiente que permite sequenciar muitos bichos de uma só vez numa placa de 96 poços. O que dá uma perspectiva bem promissora de que em dois anos, três no máximo, podemos sequenciar todo esse material e enviar aos especialistas para as suas respectivas análises de interesse”, anuncia ela, ressaltando, porém, que isso só está sendo possível após uma série de atualizações nos procedimentos.

Potes transparentes em uma prateleira com vários tubinhos tampados dentro deles

Uma mulher de perfil de máscara, jaleco e luvas manipula tubos e equipamentos de laboratório

Mãos de luvas segurando um inseto com uma pinça e um alicate acima de uma placa de acrílico

Quatro mulheres sentadas em uma bancada de máscara, jaleco e luvas manipulam objetos de laboratório. Um cartaz diz “Ciência Brasileira”

Um inseto seguro com uma pinça em um fundo azul

 

“O método que a gente segue já sofreu bastante adaptações, exatamente para que não tenhamos tropeços. E já temos uma boa quantidade de bichos sequenciados com essa metodologia, que foi realmente padronizada para trabalharmos com as amostras” comemora a cientista, ao lembrar dos desafios vencidos.

“A gente já superou os maiores desafios, entre eles, conseguir amplificar o DNA do maior número de espécies em cada placa de PCR, sendo que temos bichos de diferentes tamanhos, variando entre ‘PP’, pequeno, médio e grande.” A PCR à qual a cientista se refere é a sigla em inglês para Reação em Cadeia da Polimerase, uma técnica que produz milhões de cópias de uma determinada região de DNA partindo de uma quantidade bem pequena. Isso é o que os pesquisadores chamam de amplificar o DNA.

Nesta etapa, a professora do Inpa conta que a maior dificuldade foi fazer adaptações para os diferentes tamanhos dos insetos e dos fragmentos de DNA, adequando o tempo de programação de ciclagem – processo de aquecer e resfriar repetidamente a amostra, permitindo a amplificação de sequências específicas (cada repetição do ciclo dobra a quantidade de DNA). “Esses foram os nossos maiores gargalos – mas ainda bem que já ‘foram’, com o verbo no passado”.

Educadores em ação

Levantar informações para os cientistas é só um dos braços do projeto BioInsecta, que tem ações voltadas para educação, extensão e divulgação científica. Um primeiro produto neste sentido é o podcast Antena Cultural, que traz o diálogo entre o cotidiano das pessoas e aspectos culturais relacionados aos insetos. Os primeiros episódios foram feitos por alunos de iniciação científica para um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e o podcast continua, agora com bolsas da Universidade e da Fundação da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.

Os programas alternam uma discussão sobre o fazer científico e sobre o inseto no cotidiano. “Escolhemos um inseto e, a partir dele, buscamos relações com a arte, literatura, música, e com narrativas que vêm da infância – memórias afetivas que têm a ver com esses insetos, da culinária, das superstições e da religião”, explica Marcelo Motokane, professor da USP em Ribeirão Preto que integra o BioInsecta.

“A ideia é que o inseto não está presente só em casa, na floresta ou no jardim, mas está presente na sua cultura. É mostrar para as pessoas que a biodiversidade tem a ver com a cultura delas e que, uma vez que acabamos com a biodiversidade, um pedaço da cultura vai junto.”

Em outubro, no mês das crianças, o inseto escolhido foi a abelha. “Fomos a uma creche ouvir o que as crianças sabem sobre abelhas”. O formato é sempre esse, entrevistas com as pessoas em geral e também um especialista falando daquele inseto. No episódio, um especialista em abelhas e uma criança de três anos falam.

“E aí a gente pergunta para essa menininha: ‘Toda abelha pica?’. Ela fala: ‘Não, arapuã não pica’.” E o pesquisador conta que nem toda abelha tem ferrão, nem toda abelha pica, nem toda abelha vive em sociedade. Existe um conhecimento da ciência que uma criança de três anos também tem”, diz Motokane.

Pitaya rosa escuro em close

Um grande painel com prateleiras em um salão dispõe de amostras diversas de folhas e outras partes da vegetação desidratada

Em outra ação de extensão, a nutróloga Suzane Torquato, da etnia Sateré Mawé, foi convidada para falar sobre o uso de formigas na gastronomia, em um ciclo de palestras que envolve diferentes cosmovisões sobre a biodiversidade. Suzane deu ainda uma oficina gastronômica para jovens no Sesc em Ribeirão Preto. “A gente tem feito essas trocas e diálogos, nas confluências entre outras epistemologias e a ciência biológica”, diz o professor da USP.

O tema insetos é também alvo de pesquisas com foco na educação, orientadas por Motokane. “Tenho alunos que relacionam a literatura, os insetos e a educação para a biodiversidade, em busca de metodologias de ensino mais adequadas para a questão da conservação.” Uma pesquisa de mestrado, por exemplo, trabalha com A Metamorfose, de Franz Kafka, fazendo relações com o medo de insetos. Um outro projeto trabalha com narrativas de povos originários sobre formigas.

Até mesmo os produtos de extensão do BioInsecta viram temas de pesquisa em educação. “Em uma das pesquisas, a gente usa os podcasts em sala de aula para entender como podem ajudar o professor a aproximar os alunos da ciência e da conservação da biodiversidade.”

O jornalismo científico completa o rol de ferramentas utilizadas pelo BioInsecta para chegar além dos muros da academia. O doutor em Biologia Comparada Leandro Magrini, que também se especializou em divulgação científica, toca esta parte, produzindo uma série de matérias publicadas em diferentes veículos, atendendo a pedidos de outros jornalistas que desejam noticiar os trabalhos, e cuidando da página do projeto no Instagram, @bioinsecta. O apoio é da Fapesp, pelo programa Mídia Ciência.

Mais ao norte do País, o BioDossel, do Inpa, também investe nas ações de extensão. “A gente vai às escolas de Manaus mostrar o que fazemos dentro da floresta aos estudantes, com idade de 8 a 17 anos”, conta o técnico do Inpa Francisco Xavier Filho.

“Eles ficam apaixonados ao saber que existe esse tipo de trabalho científico dentro da floresta, do lado da cidade em que moram. Perguntam, ficam curiosos e vibram quando a gente mostra os frascos com os insetos: ‘Nossa, existe tudo isso?’. Alguns até perguntam: ‘Mas vocês matam esses insetos?’. Aí a gente explica que eles foram sacrificados, que alguns exemplares deram a vida para que outros bilhões de insetos e outros animais e plantas da floresta sejam mais bem conhecidos e, assim, preservados”, relata.

“Os estudantes ficam empolgadíssimos, querem conhecer os lugares onde a gente trabalha, e até se vestir como a gente, falar como os cientistas e técnicos. A maioria deles nunca caminhou nessa floresta que está do lado de casa, então começam a pensar diferente quando recebem estas informações de alguém que por esses anos todos caminhou, como eu e outros colegas. A mentalidade muda sobre termos que cuidar dessa floresta, usando seus recursos de uma forma correta e sustentável.”