Mudanças climáticas representam risco crescente de calor extremo em casas populares
Simulações foram feitas para Manaus e Florianópolis, regiões em que as habitações devem enfrentar aumento de temperatura interna média anual, além de redução na umidade relativa do ar
As habitações populares no Brasil devem enfrentar calor interno extremo devido às mudanças climáticas, colocando em risco a saúde e o bem-estar dos moradores. Os impactos variam conforme a região: em Manaus (AM), o maior problema será a frequência do calor: até 88% das horas de permanência em casa serão classificadas como emergenciais em 2080. Já em Florianópolis (SC), o risco está na intensidade, com ondas de calor que podem se tornar três vezes mais severas do que nos dias de hoje. A temperatura média anual no interior das residências deve subir 2,45 °C até 2050 e 4,8 °C até 2080, enquanto a umidade relativa do ar poderá cair até 11,2%, em comparação à média histórica de cada região. As previsões fazem parte de uma pesquisa de arquitetura e urbanismo com participação da USP, cujos resultados foram publicados em artigo no Journal of Building Engineering.
As simulações se basearam em projeções climáticas do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2022), que prevê altos níveis de emissão de gases de efeito estufa e intensificação do aquecimento global. O estudo analisou apartamentos populares naturalmente ventilados, semelhantes aos do programa Minha Casa Minha Vida, com dois dormitórios e 43 m² de área.

Edifício residência social utilizado como modelo de simulação em Manaus (AM) e Florianópolis (SC) – Fonte: Triana, Laberts e Sassi no artigo Journal of Building Engineering
O professor Alberto Hernandez Neto, da Escola Politécnica (Poli) da USP, foi coorientador da tese que originou o artigo, defendida na Universidade Federal de Santa Catarina. Para ele, as medidas pontuais, como o sombreamento das janelas ou o isolamento de telhados, só reduzem parcialmente a severidade térmica das habitações e o tempo de exposição ao calor, sem eliminar totalmente o desconforto térmico ou os riscos à saúde humana. “Nestas condições, os moradores teriam que recorrer a climatizações mecânicas, como ar-condicionado, cujo custo de instalação e aquisição dificilmente seriam acessíveis às famílias de baixa renda”, alerta.
O artigo Impact of climate change on indoor conditions of social residence in Brazil: assessing occupants’ vulnerability teve como primeira autora a arquiteta Emeli Lalesca Aparecida da Guarda, que defendeu a tese Análise das condições internas de edificações residenciais em projeções climáticas futuras: avaliando a vulnerabilidade dos ocupantes e a eficácia de estratégias passivas de projeto.

Alberto Hernandez Neto, coorientador da pesquisa – Foto: Arquivo pessoal
Emeli explica que seu interesse pelo tema surgiu da vivência em contextos de habitação popular, onde pôde observar de perto as dificuldades enfrentadas por famílias em climas extremos. Em sua trajetória acadêmica, percebeu que a maior parte das pesquisas se concentrava em energia e eficiência, mas havia uma lacuna sobre como as mudanças climáticas impactariam diretamente as condições internas das moradias, sobretudo das famílias de baixa renda.
Características climáticas diferentes
As cidades de Manaus e Florianópolis foram escolhidas “porque representam contextos climáticos distintos no Brasil, o que permitiu comparar os impactos das mudanças climáticas em realidades contrastantes”, explica Hernandez Neto. Manaus é quente e úmida durante todo o ano, situação em que é possível avaliar a frequência em que a pessoa fica sujeita ao calor extremo e ao desconforto térmico. Florianópolis tem clima moderado e sazonal, com estações mais definidas, sendo possível avaliar a intensidade do calor. “Ao escolher essas duas cidades, a pesquisa conseguiu avaliar como diferentes condições climáticas afetariam o conforto térmico das habitações populares frente ao aquecimento global — um retrato que pode ser expandido para outras regiões do País”, diz.
Para realizar a pesquisa, a arquiteta usou ferramentas de medição de sensação térmica. O objetivo era avaliar o quanto as habitações sociais se tornariam superaquecidas em um cenário de alterações climáticas. A Temperatura Efetiva Padrão (TEP) indicou o nível de estresse térmico que uma pessoa sentiria dentro de casa, de dia e de noite, considerando variáveis ambientais – temperatura do ar, temperatura das superfícies e umidade e movimento do ar –e variáveis humanas – tipo de roupa e taxa metabólica da pessoa.
Ao final, os dados foram analisados a partir da norma internacional ASHRAE 55, que estabelece critérios e limites de conforto térmico em edifícios naturalmente ventilados e sem aparelhos de ar-condicionado, que não devem ultrapassar 33,5 °C.

Emeli Lalesca Aparecida da Guarda, autora da pesquisa – Foto: Arquivo pessoal
Elevação da temperatura
“Os resultados apontam para um cenário bastante preocupante”, alerta a arquiteta. As simulações indicaram aumento significativo da temperatura nas duas cidades acompanhado da redução da umidade relativa do ar. Em Manaus, onde a média anual histórica é de 26,8 °C, a previsão é de elevação de 2,45 °C até 2050 e 4,81 °C até 2080. Em Florianópolis, com média histórica de 20,75 °C, a previsão é ter aumentos semelhantes.
Os meses mais abafados nas duas cidades também devem mudar. Em Manaus, o mês mais quente atualmente é setembro, com temperaturas médias mensais em torno de 27,91 °C. Nos cenários de 2050 e 2080, outubro passa a ser o mês de maior calor, com temperaturas médias mensais de 32,86 °C (+4,47 °C) e 37,38 °C (+7,47 °C), respectivamente. Em Florianópolis, o mês mais quente do período histórico é fevereiro, com média de 25,27 °C. Nos cenários de 2050 e 2080, as médias deste mês aumentarão para 26,84 °C (+1,57 °C) e 28,10 °C (+2,83 °C), respectivamente.
Umidade relativa do ar
A pesquisa mostrou que, à medida que a temperatura do ar sobe, a umidade relativa tende a cair. “Isso acontece porque o ar mais quente consegue reter mais vapor de água. Assim, mesmo que a quantidade absoluta de umidade no ambiente não mude muito, a proporção de vapor presente em relação ao que o ar poderia suportar diminui”, descreve o estudo.
Nas simulações, esse efeito aparece com clareza: em Manaus, a umidade relativa que hoje gira em torno de 84,8% pode cair para 43,7% em outubro de 2080, quando a média da temperatura chegará a 37,3 °C. Em Florianópolis, no mesmo mês, a previsão é de 40,4% de umidade relativa, com temperaturas em torno de 28,2 °C.
Segundo a arquiteta, para Manaus, os resultados foram extremos: em 2080 até 88% das horas de permanência dentro das casas podem ocorrer em condições classificadas como de “emergência térmica”, ou seja, situações em que o corpo humano tem dificuldade de regular sua temperatura. Já em Florianópolis, uma cidade com clima considerado ameno, observamos aumentos expressivos na gravidade dos eventos de superaquecimento — mais de 300% em relação ao cenário atual.
“Esses dados são particularmente alarmantes porque mostram que nem mesmo regiões historicamente mais confortáveis, como Florianópolis, estarão isentas dos efeitos severos do aquecimento global” – Emeli Guarda
Possíveis soluções
Para a arquiteta, sua pesquisa mostrou que as mudanças climáticas não são um problema distante, mas algo que já afeta diretamente a vida das pessoas dentro de suas casas. “O superaquecimento das habitações populares pode comprometer a saúde, o bem-estar e até a produtividade, ampliando desigualdades sociais — já que justamente as famílias de menor renda, que têm menos acesso a climatização artificial, são as mais vulneráveis”, diz.
Como possíveis soluções, ela recomenda o uso de estratégias de adaptação climáticas passivas de conforto térmico nas habitações, aproveitando recursos naturais e soluções arquitetônicas adaptadas a cada região. Entre as medidas sugeridas estão a orientação adequada dos edifícios em relação ao sol e aos ventos, o uso de sombreamento com vegetação, ventilação cruzada (com janelas e portas posicionadas estrategicamente), telhados com isolamento térmico e pisos frios. As medidas devem ser adaptadas de acordo com as regiões: em Manaus, onde a alta umidade limita o resfriamento natural, são indicadas sombreamento externo, telhados refletivos, coberturas ventiladas, orientação solar correta das edificações e ventilação natural cruzada. Em Florianópolis, isolamento de telhados, proteção solar e ventilação natural noturna são mais eficazes, com possibilidade de sistemas híbridos que combinem ventilação natural e resfriamento mecânico eficiente.
Na opinião da arquiteta, as disparidades socioeconômicas devem ser consideradas na formulação de políticas públicas, garantindo acesso equitativo a soluções de conforto térmico por meio de subsídios, melhorias em habitações públicas e iniciativas educacionais para comportamentos adaptativos ao clima. Emeli orienta que se atualizem as políticas habitacionais brasileiras para enfrentar os impactos das mudanças climáticas. Isso inclui revisar normas técnicas para considerar cenários futuros de aquecimento global, adotar estratégias bioclimáticas e reforçar requisitos de desempenho térmico, especialmente na habitação de interesse social.
Outro desafio, em sua opinião, é a pobreza energética, que deixa famílias de baixa renda vulneráveis ao calor extremo por não conseguirem arcar com sistemas artificiais de climatização. O estudo defende subsídios para retrofit, uso de materiais mais eficientes e integração entre habitação e planejamento urbano, com mais vegetação e corredores de ventilação. “A ideia seria articular habitação, energia e urbanismo para garantir conforto térmico e reduzir desigualdades sociais”, avalia.
Riscos para a saúde humana
O mesmo relatório do IPCC utilizado na pesquisa alerta que as mudanças climáticas ampliam os riscos para a saúde humana, sobretudo entre populações vulneráveis, como pessoas de baixa renda, crianças e idosos. Entre os principais impactos estão o agravamento de doenças cardiovasculares e respiratórias, a expansão de enfermidades transmitidas por mosquitos — como dengue, chikungunya e zika — e o aumento de problemas de saúde mental. Segundo o relatório, a intensificação das ondas de calor é um dos efeitos mais graves. Estudos apontam que a onda de calor de 2010 na Rússia causou 56 mil mortes, enquanto o verão europeu de 2003 resultou em 71 mil óbitos em 12 países.
Mais informações: Alberto Hernandez Neto, ahneto@usp.br; e Emeli Lalesca Aparecida da Guarda, emeliguarda@gmail.com
