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Onda de calor de 2024 dizimou corais no Nordeste, mas não em outras regiões do Brasil

Onda de calor de 2024 dizimou corais no Nordeste, mas não em outras regiões do Brasil

Estudo mapeou pela primeira vez os impactos de um evento global de branqueamento sobre os diversos ecossistemas recifais do País

A onda de calor que varreu os oceanos do planeta em 2023 e 2024 deixou cicatrizes profundas em alguns recifes de coral brasileiros. A região Nordeste foi a mais impactada, segundo um novo estudo publicado na revista Coral Reefs. Em Maragogi, no norte de Alagoas, o excesso de calor dizimou quase 90% da cobertura de corais da região. Em São José da Coroa Grande, no sul de Pernambuco, mais da metade dos corais morreram. Nas outras regiões monitoradas, por outro lado, o impacto foi mínimo ou até mesmo nulo, em termos de mortalidade.

Os dados fazem parte do primeiro levantamento sistemático já realizado sobre os impactos de um evento global de branqueamento sobre os recifes de coral brasileiros. O branqueamento é um fenômeno induzido pelo excesso de calor na água do mar, que faz com que os corais expulsem as microalgas fotossintetizantes (chamadas zooxantelas) que vivem dentro de suas células e produzem grande parte da energia necessária à sua sobrevivência. Quando isso ocorre, os corais perdem a cor (“branqueiam”) e podem vir a morrer, dependendo da intensidade e da duração da onda de calor, entre outros fatores.

Os pesquisadores monitoraram 18 ecossistemas recifais ao longo de quase toda a costa brasileira, distribuídos entre Ceará e Santa Catarina, além de duas ilhas oceânicas (Arquipélago de Fernando de Noronha e no Atol das Rocas), entre agosto de 2023 e dezembro de 2024. As observações foram feitas “em tempo real”: antes, durante e depois do pico de branqueamento, que ocorreu entre abril e junho de 2024 — o ano mais quente já registrado na história recente do planeta, tanto em terra quanto no mar.

Os resultados desse monitoramento, descritos no artigo da Coral Reefs, incluem boas e más notícias. A má notícia é que quatro pontos da costa nordestina registraram mortalidade em massa de corais: Maragogi, em Alagoas (88%), São José da Coroa Grande e Porto de Galinhas, em Pernambuco (53% e 28%, respectivamente), e Rio do Fogo, no Rio Grande do Norte (38%); o que sugere que essa região foi fortemente impactada pelo branqueamento de uma forma geral. (Os números entre parênteses representam a redução na extensão da cobertura de corais vivos nos recifes de cada localidade.)

Em média, considerando todos os sítios de monitoramento, os corais brasileiros foram expostos a 88 dias de estresse térmico nesse período, o que equivale a três meses de temperaturas acima do normal. O branqueamento afetou cerca de um terço (36%) das áreas avaliadas, com diversas espécies de coral impactadas. 

thumb do podcast O Mar Não Está Pra Peixe

A reportagem do Jornal da USP mergulhou em Maragogi (AL) em abril de 2024, no auge da onda de calor e do branqueamento de corais na região; acompanhada dos pesquisadores Miguel Mies, da USP, e Claudio Sampaio e Taciana Kramer, da Universidade Federal de Alagoas. O relato desse mergulho está no podcast O mar não está pra peixe, que trata das principais ameaças à conservação do oceano em escala global, incluindo mudanças climáticas, pesca predatória e poluição. Os episódios estão disponíveis no site do Jornal da USP e no Spotify.

Com base nas observações de campo, os cientistas já esperavam que os números finais seriam ruins para algumas dessas localidades — porque a destruição era visível. Ainda assim, foi um choque compilar os dados e ver a que ponto a mortalidade havia chegado. “É assustador, porque fica a sensação de que a gente está correndo contra o tempo”, diz a bióloga Giovanna Destri, que faz doutorado no Instituto Oceanográfico (IO) da USP. Ela divide a primeira autoria do trabalho com o seu orientador, o professor Miguel Mies, do Laboratório de Recifes de Corais e Mudanças Climáticas (Larc) do instituto. 

O que aconteceu no Nordeste em 2024, segundo Destri, é um alerta do que pode vir a acontecer em outros lugares do Brasil e do mundo nos próximos anos, com o agravamento das mudanças climáticas e dos eventos de branqueamento, que tendem a ser cada vez mais intensos e frequentes à medida que o planeta esquenta. Vários estudos projetam um colapso quase que total dos recifes de coral do planeta nas próximas décadas, caso a tendência de aquecimento siga na trajetória atual.

A boa notícia, por enquanto, é que na maioria (11) dos pontos monitorados não houve perda de cobertura coralínea, apesar de os corais terem sido submetidos a condições de temperatura que, pelas métricas internacionais, deveriam ter resultado em taxas potencialmente elevadas de branqueamento e mortalidade. Nessas localidades, os corais branquearam, mas não morreram, e recuperaram suas zooxantelas depois que a temperatura baixou. Isso inclui todos os pontos do sul da Bahia para baixo e do Rio Grande do Norte para cima, incluindo o Banco dos Abrolhos, o Arquipélago de Fernando de Noronha e o Atol das Rocas — três localidades icônicas e importantíssimas para a biodiversidade marinha do Atlântico Sul. Em outros três pontos — um em Sergipe e dois na Bahia — foi registrada apenas uma mortalidade leve, com reduções de cobertura coralínea da ordem de 5%.

Mapa mostrando os 18 pontos que foram monitorados por pesquisadores durante o quarto evento global de branqueamento em massa de corais, no biênio 2023-2024. Os percentuais indicam a variação na cobertura viva de corais de cada região; e os números entre parênteses representam o índice máximo de aquecimento acumulado (DHW) em cada ponto. Variações de 3% para mais ou para menos são consideradas dentro da margem de erro, representando estabilidade na cobertura de corais – Fonte: Coral bleaching and mortality across a 24° latitudinal range in the Southwestern Atlantic during the fourth global bleaching event (Coral Reefs, 2025)

O trabalho foi liderado pelo Projeto Coral Vivo, com a participação de dezenas de pesquisadores, vinculados a 20 instituições — incluindo 15 universidades públicas brasileiras, três organizações não governamentais brasileiras, uma agência federal brasileira e uma universidade francesa. “A beleza desse trabalho, apesar de descrever algo muito triste, é o esforço que conseguimos fazer de juntar a comunidade científica brasileira em torno de descrever o que está acontecendo e de alertar a sociedade brasileira sobre o que está acontecendo”, afirma Mies, que é coordenador de pesquisas do Projeto Coral Vivo. Noventa pesquisadores assinam o artigo científico na Coral Reefs, sendo 32 deles da USP.

Os 18 pontos monitorados no estudo não são os únicos onde houve branqueamento nem mortalidade, mas servem como uma referência amostral daquilo que aconteceu em grande escala na costa brasileira em 2024. A heterogeneidade dos impactos do branqueamento, segundo os cientistas, é reflexo da condição dos ecossistemas recifais brasileiros, que são extremamente variados, tanto em termos de espécies, quanto das características ambientais e oceanográficas que os compõem. Os recifes do Nordeste são muito diferentes dos recifes de coral do Sudeste, por exemplo, e mesmo entre localidades geograficamente próximas podem haver diferenças significativas com relação à diversidade de espécies, tipo de substrato, profundidade, claridade da água e exposição a ameaças locais, como poluição, pesca predatória e turismo desordenado. 

“Não tem como todos os corais do Brasil responderem da mesma forma [ao aquecimento], porque os recifes são diferentes”, resume Destri. Um cenário bem diferente do que ocorre na Austrália ou no Caribe, por exemplo, onde o gradiente latitudinal é muito menor e as condições ambientais são mais homogêneas entre os recifes.

Nos recifes do Sul e Sudeste, por exemplo, prevalecem espécies de corais mais robustas e habituadas a condições ambientais adversas, como turbidez elevada e variações constantes de temperatura da água; o que pode ajudar a explicar sua maior resiliência ao efeitos do branqueamento. Isso não significa, porém, que eles não possam sofrer mortalidade, também, em eventos futuros.

Considerando todas as áreas pesquisadas, a redução na cobertura de corais vivos como um todo foi de 5%. As espécies que apresentaram maior índice de mortalidade foram Scolymia wellsii (redução de 66%), Millepora alcicornis (54%) e Mussismilia harttii (28%), conhecidas genericamente como coral-esmeralda, coral-de-fogo e coral-vela. A primeira é preocupante, porque nunca havia branqueado antes; e as outras duas são particularmente preocupantes por serem peças fundamentais na complexidade estrutural dos recifes brasileiros, da qual centenas de espécies de peixes e invertebrados marinhos dependem para a sua sobrevivência. A extinção local de uma dessas espécies, portanto, pode comprometer gravemente a saúde do ecossistema, com consequências potencialmente severas também para a pesca e o turismo.

Colônias branqueadas de coral-de-fogo nos recifes de Maragogi (AL), em abril de 2024, durante o quarto evento global de branqueamento em massa – Foto: Herton Escobar / USP Imagens

Segundo os pesquisadores, diante do cenário atual de agravamento crescente do aquecimento global, é difícil imaginar que novas colônias de corais terão uma chance de se estabelecer com sucesso nesses ambientes degradados, para substituir aquelas que foram mortas em 2024. “Esperança sempre há, de que as coisas podem melhorar”, diz Destri.

Mas, quando você trabalha com esse tipo de dado e percebe que a tendência é de a situação só piorar, só ficar cada vez mais quente (…) não tem como esperar que isso se regenere ao ponto de recuperar a cobertura de corais que a gente tinha 20 anos atrás. Acho que isso a gente já pode descartar da lista de esperanças. Mas é óbvio que tem ações que a gente pode adotar para frear o avanço daquilo que já está acontecendo.

Mitigar as “comorbidades” locais, que também contribuem para a degradação desses ecossistemas (como pesca predatória e poluição), é um passo fundamental para aumentar a resiliência dos corais contra os efeitos do aquecimento, segundo os pesquisadores. Inclusive, dentro de unidades de conservação. Onze dos 18 pontos de monitoramento do projeto estão dentro de áreas protegidas. Isso inclui os dois pontos que registraram maior taxa de mortalidade (Maragogi e São José da Coroa Grande, na Área de Proteção Ambiental Costa dos Corais); mas também vários que não tiveram mortalidade nenhuma, como os parques nacionais marinhos de Fernando de Noronha e Abrolhos.

Segundo Destri, é importante olhar para os dois extremos e entender quais fatores estão influenciando a sobrevivência dos corais em cada situação, tanto para o bem quanto para o mal. “Agora, a gente precisa sentar e rever quais são as nossas prioridades para conservação de recifes de coral no Brasil, tanto do ponto de vista geográfico quanto de espécies”, completa Mies.

Aquecimento crescente

Eventos de branqueamento em massa vêm ocorrendo com mais frequência e maior intensidade nas últimas décadas, em função do aquecimento global causado pela queima de combustíveis fósseis. Desde 1997, segundo os cientistas, já ocorreram quatro eventos globais de branqueamento — quando vários recifes de coral branqueiam quase que simultaneamente ao redor do mundo —, além de centenas de eventos locais ou regionais. O quarto, e mais intenso, desses eventos globais ainda está em curso: começou em 2023 e já afetou 84% dos recifes de coral do mundo, com registros de branqueamento em 82 países, segundo um levantamento divulgado em abril. 

Os recifes de coral brasileiros foram afetados por todos esse eventos, mas nunca havia sido feito um estudo integrado para avaliar a extensão e os danos causados pelo branqueamento em larga escala, de forma sistemática e padronizada, contemplando toda a costa nacional. Até agora.

A “inspiração” para organizar a rede de monitoramento, segundo Mies, foi o branqueamento em massa que atingiu o Brasil no biênio 2019-2020. Foi um evento local (restrito à costa brasileira) e fora de um ano de El Niño (fenômeno de aquecimento das águas do Pacífico), que pegou os cientistas desprevenidos. O início da pandemia de covid-19, em fevereiro de 2020, dificultou ainda mais as coisas, impedindo que pesquisadores fossem a campo para estudar o fenômeno. Consequentemente, com exceção de alguns estudos pontuais, há pouquíssimas informações científicas disponíveis sobre o impacto que esse branqueamento deixou nos recifes de coral brasileiros.

Quatro anos depois, cientes de que um novo branqueamento em massa estava prestes a ocorrer por aqui — em função das temperaturas recordes do oceano, da ocorrência de um forte El Niño, e de tudo que já estava acontecendo nos recifes de outros países desde o início de 2023 —, os pesquisadores tiveram tempo de se preparar para documentar o fenômeno. “Precisamos fortalecer esse tipo de iniciativa, porque a gente sabe que isso vai acontecer de novo, e cada vez mais cedo do que a gente imagina”, defende Mies. “Não podemos ser pegos de calça curta de novo.”

O mesmo esforço de monitoramento foi realizado no primeiro semestre deste ano. Os dados ainda não foram compilados, mas a onda de calor foi consideravelmente menos intensa desta vez, e não há relatos de branqueamento significativo ou mortalidade em massa, segundo Mies.

Gráfico preparado pelo Instituto de Mudanças Climáticas da Universidade de Maine, nos EUA, mostra como a temperatura média da superfície do oceano variou ao longo dos últimos 40 anos. A temperatura dos últimos três anos (2023, 2024 e 2025) está significativamente acima da média histórica do período – Fonte: Climate Reanalyzer / University of Maine / NOAA (Adaptado pelo Jornal da USP)

Dados históricos de monitoramento por satélite da temperatura de superfície do oceano indicam que os recifes brasileiros já passaram, coletivamente, por centenas de eventos de estresse térmico (aquecimento exacerbado) nos últimos 40 anos, e que a intensidade e a frequência desses eventos aumentaram significativamente a partir de 2010, segundo um estudo também liderado por Mies e Destri, e publicado em abril na revista Global Change Biology. Entre 2010 e 2019, por exemplo, ocorreram cerca de 15 eventos de estresse térmico por ano, comparado a três episódios por ano entre 1990 e 1999, segundo o estudo, que analisou o histórico de 33 pontos ao longo de toda a costa brasileira.

“Com isso, nosso conjunto de dados mostra que múltiplos episódios de branqueamento provavelmente ocorreram no Atlântico Sul, mas não foram registrados em campo. Portanto, as informações atualmente disponíveis para o Atlântico Sul provavelmente subestimam a extensão do branqueamento que ocorre na região, a qual vem apresentando aumentos na intensidade, duração e frequência do estresse térmico”, concluem os autores, no resumo do artigo.

Já um estudo publicado hoje (17 de setembro) na revista Nature prevê que 70% dos recifes de coral das regiões tropicais do Atlântico ocidental poderão entrar em processo de erosão até 2040, em função do aumento do nível do mar, causado pelo aquecimento global. Essa taxa aumenta para 99% até 2100, se o aquecimento passar de 2ºC. O estudo foi liderado por pesquisadores da Universidade de Exeter, na Inglaterra, e analisou evidências fósseis recifais de mais de 400 pontos da região do Caribe.

Muitos dos pesquisadores brasileiros envolvidos nesses estudos recebem financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além de outras agências públicas de fomento à pesquisa, federais e estaduais, e de suas próprias instituições. O Projeto Coral Vivo é financiado pela Petrobras.

O artigo Coral bleaching and mortality across a 24° latitudinal range in the Southwestern Atlantic during the fourth global bleaching event pode ser lido neste link.

Mais informações: miguel.mies@usp.br, com Miguel Mies, e giovannanddestri@gmail.com, com Giovanna Destri