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Especialistas discutem impacto da IA na produção literária e no mercado editorial

Especialistas discutem impacto da IA na produção literária e no mercado editorial

Uso de algoritmos na criação de obras literárias – antes uma atividade exclusiva dos seres humanos e agora também feita por máquinas – gera dúvidas, incertezas e conflitos éticos

Em julho passado, o cancelamento de um concurso literário promovido pela Editora Kotter, de Curitiba (PR), revelou os primeiros impactos que a inteligência artificial (IA) vem causando na produção literária e no mercado editorial brasileiro. São os primeiros sinais de um tempo de incertezas e expectativas.

Em suas mídias sociais, a Editora Kotter publicou um comunicado cancelando a edição de 2025 de seu concurso de literatura, filosofia e política. Segundo as informações da editora, das 900 obras recebidas, 40 apresentaram sinais óbvios do uso de IA, enquanto 60 mostraram fortes indícios de inteligência artificial em sua produção. “Pelo nosso compromisso com a idoneidade literária, diante da identificação de inúmeras obras recebidas terem sido geradas por IA e na impossibilidade de identificar com a certeza necessária esse uso, vimo-nos forçados a cancelar o concurso deste ano”, informa a nota da Kotter. “Estamos estudando como realizar o concurso, ano que vem, em tempos de IA.”

A partir desse fato, o Jornal da USP procurou professores e especialistas nas áreas da tecnologia, da literatura e da editoração para ouvir o que eles pensam das possibilidades, problemas e incertezas trazidos pelos algoritmos. O cenário é repleto de dúvidas, e a cautela vem sendo adotada como principal procedimento. Entretanto, apesar dos problemas previstos, não se espera nenhuma catástrofe.

Para o sociólogo Glauco Arbix, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador do Observatório da Inovação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, situações como a vista em Curitiba devem acontecer de modo cada vez mais frequente. “Como as ferramentas e plataformas de IA estão evoluindo muito rapidamente e ganhando qualidade muito grande, elas estão se aproximando de textos muito semelhantes aos produzidos por humanos”, comenta o professor. “Isso faz com que seja cada vez mais difícil identificar o que foi feito ou não pela máquina.”

O problema, Arbix explica, é que a literatura envolve aquilo que nos distingue como humanos: a criatividade. A linguagem é o reino da humanidade, o que nos separa de outros entes e seres da natureza. Estruturar emoções, dar formas aos sentimentos e explorar a criatividade são áreas em que até há pouco tempo tínhamos certeza ser impossível a imitação, seja por animais, seja por máquinas.

Homem com bigode e usando óculos.

O professor Glauco Arbix – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“O que estamos vendo é que os algoritmos estão evoluindo tão rapidamente que eles acabam ocupando o espaço que achávamos ser nosso, dos humanos”, indica o professor. Mas não se trata de uma situação exclusiva do campo literário. Na produção audiovisual, na área musical e em todos os ramos e segmentos da produção artística, Arbix vê esse mesmo processo em operação, de maneira generalizada.

No que toca o campo literário, os desafios não dizem respeito apenas a concursos, diz o professor. Povoar o mundo com textos, poesias, ensaios, músicas e vídeos produzidos por algoritmos traz também perguntas éticas. “Até que ponto você não está reproduzindo vieses e preconceitos contidos nos bancos de dados dessas grandes plataformas?”, questiona Arbix. Ele cita o exemplo da Grok, ferramenta de inteligência artificial de Elon Musk, que tem suas respostas afinadas com a linha editorial da Fox News, favorável a Donald Trump.

“Não é só informação errada. Estou falando sobre orientações ligadas à visão de mundo”, comenta o docente. “Isso implica visão de mundo sobre as mulheres, gênero, religião, sobre a geopolítica, todas as questões que tratamos no dia a dia.”

Por isso, assinala Arbix, o primeiro passo é educar as pessoas sobre as plataformas e o que é a IA, alertando sobre os preconceitos que podem vir embutidos nos dados e respostas produzidos pelas ferramentas. Mais importante do que vetar o uso, acredita, é fundamental ajudar as pessoas a entender a natureza dessas plataformas.

É nesse sentido que o professor também considera essencial conscientizar a sociedade para a necessidade de transparência no uso da IA. “É preciso educar e tirar procedimentos, mostrar para as pessoas que ser transparente não desvaloriza suas atividades.” Indicar onde as ferramentas foram usadas valorizaria o trabalho humano dos autores, defende, tanto no campo literário como nos próprios meios universitários e científicos, onde o uso da inteligência artificial já é uma realidade, apesar das dificuldades de regulamentar seu uso.

Outro ponto levantado por Arbix envolve os possíveis impactos que delegar atividades tipicamente humanas para máquinas pode representar para a vida das pessoas. “O que significa isso, do ponto de vista da sua estrutura como ser humano? Significa que você está pensando menos, de uma maneira mutilada? Ao delegar, você adormece parte de suas atividades, você está entorpecendo suas habilidades ou, no mínimo, deixando de desenvolvê-las? Isso está em aberto, não temos respostas conclusivas.”

De todo modo, Arbix considera que outro aspecto importante da discussão é reafirmar a relevância da atividade humana e que nem tudo pode ser delegado para as máquinas. “Cada vez que você substitui os humanos, você tem perda de qualidade no que faz.” O professor pensa, aqui, sobretudo nas tarefas do pensamento. Diferentemente de outras ferramentas, como uma calculadora, os algoritmos tomam decisões relacionadas à cognição. “Atingem pessoas que trabalham com a mente e o pensamento. Você não está apenas no nível de rotinizar atividades corriqueiras.” Esse é o ponto: até hoje, as máquinas substituíram músculos, diz o professor. Mas agora estão substituindo mentes.

“Há um universo pela frente e um número muito grande de medidas que podem ser tomadas”, acrescenta. “Eu só acho que simplesmente barrar não vai resolver o problema de ninguém.”

Criação literária escapa dos padrões

Fernando Paixão, escritor e professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, não vê com grande preocupação a presença da inteligência artificial no campo da literatura. Pelo menos não da literatura de boa qualidade.

“A IA trabalha com uma certa média”, exemplifica o professor. “Se você colocá-la para escrever um conto igual a Clarice Lispector, até acredito que o algoritmo possa fazer um conto arrumadinho, mas valendo-se de uma média da Clarice. Aquele conto seria realmente concebido por ela?”

A criação literária que realmente interessa, diz Paixão, é aquela que tenta escapar dos padrões. Que é mais criativa, ousada e procura se renovar. Por isso, ele não vê grandes problemas. O docente acredita que é legítima a preocupação com a invasão da IA, fato ligado não só à literatura, mas a todos os campos do saber, mas não acha que ela seja capaz de produzir novidades, pois trabalha com essa média. “E o artista é aquele que encontra caminhos não óbvios”, explica Paixão, que lançou recentemente a coletânea Antologia do poema em prosa no Brasil (Ateliê Editorial/Editora Unicamp).

Homem de cabelos grisalhos e usando óculos.

O professor e escritor Fernando Paixão – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Por outro lado, Fernando Paixão acha que o mercado editorial pode se beneficiar da IA na produção de certas obras nas quais questões de linguagem e complexidade das personagens não sejam tão importantes. Obras que fiquem exatamente nesse “nível médio”, como livros de autoajuda e certos tipos de best-seller. “Seria um benefício para as editoras e um malefício para os autores”, brinca o docente. “O padrão médio da literatura poderá ser feito pelas máquinas inteligentes.”

É possível imaginar um cenário, comenta Paixão, em que as grandes corporações deixem de empregar criadores e passem a usar o algoritmo. Escritores medianos poderiam ser substituídos pela IA, enquanto as editoras aumentariam a produção de títulos. O que está no cerne da questão é substituir o trabalho assalariado pelo trabalho da máquina, o trabalho criativo por um trabalho padrão.

Em contrapartida, o movimento poderia fazer outras editoras despontarem investindo em mercados mais cultos, preparados e exigentes. E, acredita o docente, a IA não vai impedir que as pessoas continuem simplesmente querendo escrever. Ele vê três possibilidades: produções inteiramente humanas, híbridas e produzidas só com uso de inteligência artificial.

De todo modo, neste momento em que tudo é incerto, Paixão aponta para a questão ética. No mínimo, as editoras precisam deixar claro quem está produzindo aquele conteúdo, para que o leitor seja bem informado a respeito e possa decidir.

Nova tecnologia faz repensar noção de autoria

Para a professora Marisa Midori Deaecto, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o cenário é assustador. Não porque imagina tragédias, mas porque tudo ainda é muito indefinido. É difícil fazer previsões, já que as mudanças são velozes e “passado, presente e futuro parecem que estão agora em conflito”, reflete Marisa.

“A constatação de que até nos concursos literários as pessoas criam alguma coisa por IA é um tanto assustadora porque a literatura sempre foi um espelho da humanidade”, comenta a professora. “É um espelho da nossa capacidade de invenção e de criação.” Delegar essa capacidade, para Marisa, parece representar uma desistência em relação à nossa capacidade sui generis de ultrapassar a realidade.

Marisa aponta que a literatura já viveu outros momentos de transição tecnológica, mas essa é a primeira vez em que uma tecnologia se presta a substituir a tarefa humana. “O texto não é mais apenas um meio de comunicação e de guarda”, destaca a professora. “Ele também é o produto de uma máquina. É um momento único na história da escrita e na história da capacidade criadora da humanidade.”

Mulher sorrindo.

A professora Marisa Midori Deaecto – Foto: Arquivo pessoal

Mas, para além da discussão da capacidade humana de criar e de usar a imaginação, ainda existe a dimensão jurídica do problema, para a qual Marisa chama atenção. Ela se refere às implicações que a IA coloca na questão da autoria.

Há cerca de 20 anos, o aparato jurídico ocupado com os direitos do autor e o copyright começou a ser repensado com a chegada do livro digital e a difusão do PDF, gerando dúvidas a respeito da função autor e da função jurídica relacionada à autoria. Mas agora, com a IA, as questões aumentaram, explica a professora. “O momento de hoje vai além, coloca em dúvida o que é o plágio e a cópia, uma vez que uma pessoa física, que responda às leis, pode assinar pela produção de uma máquina.”

Marisa também salienta as implicações da IA para a própria questão da autoria, outro aspecto que acompanha o problema. Hoje em dia, Marisa já percebe um movimento de problematização da autoria, com autores que se escondem atrás de pseudônimos e evitam aparições públicas. Trata-se, para ela, de um jogo com a produção literária que busca colocar em dúvida a função autor, estabelecida desde o século 18.

“Talvez a IA provoque de fato um novo estatuto sobre a questão da autoria e da atividade da escrita”, comenta Marisa. “Essa figura do autor – ou essa supervalorização do autor – é algo recente na história da escrita e talvez estejamos passando por um momento de desconstrução do que é a atividade da escrita e a atividade autoral.”

Marisa concorda com Paixão em que é pouco provável que o mercado editorial coloque obstáculos para a presença da IA na produção literária. Em anos recentes, ele já deu provas de sua capacidade de se adaptar quando o setor do livro impresso soube absorver obras publicadas originalmente no meio digital. O que deve acontecer, sugere a professora, é um trabalho de marketing para adaptar o público e um mapeamento do comportamento diante da novidade.

Já convivemos com a aceitação de diferentes níveis de escrita literária, lembra Marisa. Existe público para os best-sellers e para autores como Guimarães Rosa, cujo trabalho com a linguagem pode significar a chave para se pensar o universo literário diante da IA.

“A literatura que explora a linguagem talvez seja fruto da capacidade humana”, diz a professora. “Espero que não se torne tão rara assim – está difícil encontrar, e não sei se a IA pode substituir isso. A exploração da língua, as surpresas que a língua portuguesa pode nos causar vão além de um arcabouço de informações. Passa pela fala, pela experiência humana, por fatores que uma máquina não pode explorar.”

Editora da USP restringe uso de IA

Para lidar com a presença da inteligência artificial no mercado editorial, a Editora da USP (Edusp) vem adotando uma política de restrição total nos títulos que publica. É o que conta a editora Carla Fernanda Fontana. “Não aceitamos textos escritos por IA. Isso foi uma decisão tomada pelo conselho editorial”, comenta.

Por conta disso, já na entrega dos originais, os autores precisam assinar uma declaração anunciando que não houve uso de IA na obra. Carla explica que é uma espécie de antecipação do que já era previsto no contrato assinado entre autor e editora a respeito da originalidade do texto. “Neste primeiro momento, para evitar problemas futuros, enquanto esse assunto é muito novo, optamos pela restrição.”

Não se trata de um procedimento adotado apenas pela Edusp, mas uma preocupação de todo o mercado editorial, aponta Carla. Ela lembra que o próprio Prêmio Jabuti – a mais prestigiada honraria literária do País, entregue pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) – também é totalmente restritivo quanto ao uso da IA.

Carla conta ainda que a partir deste ano, com a dimensão que o assunto ganhou, alguns contratos de edição que a Edusp assinou com editoras estrangeiras para tradução já vieram com itens que deixam explícita a proibição aos tradutores de carregar qualquer arquivo recebido em sistemas de IA. “No contrato já está especificado que, no processo de produção, o texto não pode ser usado para alimentar sistemas de IA.”

A editora acredita que usos proveitosos da IA ainda podem ser discutidos, mas ainda é preciso estudar o que pode ser feito. “Com certeza eles existem, mas não sabemos as consequências disso”, comenta. “É ainda nebuloso para fazermos previsões.”

*Estagiário sob orientação de Moisés Dorado