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Isolado pela primeira vez vírus parente do sarampo em morcegos da América Latina

Isolado pela primeira vez vírus parente do sarampo em morcegos da América Latina

Vírus pertence ao mesmo grupo do sarampo humano e de outros patógenos de alto impacto; descoberta envolveu 14 anos de pesquisa e contou com participação de pesquisadores brasileiros

Um feito inédito na virologia internacional foi alcançado por uma equipe de pesquisadores da América Latina e da Europa: pela primeira vez, um vírus do gênero Morbillivirus foi isolado e cultivado em laboratório a partir de morcegos silvestres da América Latina. O estudo, resultado de mais de 14 anos de investigação científica, foi publicado como artigo de capa da edição de junho da revista Nature Microbiology — uma das mais importantes na área.

O vírus isolado pertence ao mesmo grupo do sarampo humano (Measles virus) e de outros patógenos de alto impacto, considerados um dos mais contagiosos existentes entre os mamíferos. Embora já houvesse sinais genéticos da presença de morbilivírus em morcegos, nenhum representante havia sido isolado de amostras clínicas até agora, o que limitava os estudos sobre sua biologia, risco de transmissão e potencial zoonótico.

Os autores do trabalho também identificaram morbilivírus em macacos silvestres (saguis) encontrados mortos no Brasil. Embora não se saiba se os vírus causaram a morte, as análises genéticas revelaram uma forte similaridade com os morbillivírus de morcegos. Neste caso, os vírus dos primatas conseguiram utilizar o mesmo receptor SLAMF1 usado pelo sarampo humano, o que aponta para um risco potencial de transmissão interespécies.

Por outro lado, testes de neutralização mostraram que anticorpos gerados por infecções anteriores de sarampo ou cinomose canina foram eficazes contra os morbillivírus de morcego, sugerindo uma possível imunidade cruzada.

Ciência colaborativa

“Foram anos de esforço até conseguirmos uma linhagem celular que expressasse os receptores certos para o vírus. Meu foco foi entender quais receptores ele utiliza e como tornar possível seu cultivo em laboratório”, explica Angélica Campos, uma das autora do artigo e pesquisadora do Institut Pasteur de São Paulo (IPSP), sediado na USP.

“Foi um trabalho intenso, que exigiu engenharia genética, implementação de linhagens celulares primárias de morcegos, testes de expressão proteica e validação funcional. Só foi possível porque reunimos competências muito específicas de diferentes grupos e países. É um exemplo de ciência colaborativa na prática”, acrescenta Luiz Gustavo Góes, pesquisador do IPSP e coautor do estudo.

Homem adulto, cabelos lisos e escuros na altura das orelhas. Usa camisa preta e sorri levemente. Ao fundo, à esquerda, uma estante de livros; à direita, uma ilustração de um vírus na parede

Luiz Gustavo Góes – Foto: Reprodução/Biblioteca Virtual Fapesp

A pesquisa envolveu uma ampla rede de instituições e contou com Angélica e Luiz Gustavo, que desenvolveram suas contribuições durante um período de colaboração na Charité – Universitätsmedizin Berlin. Ela também abriga o Hospital Universitário Charité, em Berlim. Mais especificamente, o trabalho foi conduzido no Institut für Virologie (Instituto de Virologia da Charité), dentro do grupo de pesquisa liderado pelo professor Felix Drexler, especializado em vírus zoonóticos e emergentes.

Diversidade analisada

O estudo analisou mais de 1.600 morcegos de diferentes espécies no Brasil e na Costa Rica, incluindo morcegos hematófagos, insetívoros e frugívoros. Em mais de um terço dos morcegos-vampiros examinados foram encontrados anticorpos contra o novo morbilivírus, indicando que infecções são comuns e geralmente não letais para os animais. O projeto teve início em 2010, com coletas em Salvador (BA), no Parque Nacional do Iguaçu (PR) e em regiões da Costa Rica. A equipe realizou o sequenciamento genético completo de dezenas de amostras até identificar uma linhagem viral íntegra. O passo seguinte — e decisivo — foi decifrar como o vírus interagia com as células hospedeiras.

Como o bat morbillivirus não utiliza os mesmos receptores celulares que o sarampo (SLAMF1 e Nectin-4), foi preciso desenvolver linhagens celulares específicas derivadas de tecidos de morcego e testar a expressão de receptores celulares especializados que permitissem a replicação viral. Esse avanço técnico, que envolveu engenharia genética e testes funcionais, foi conduzido por Angélica Campos no Instituto de Virologia da Charité, com apoio direto de Luiz Gustavo Góes.

Com o vírus finalmente isolado e replicado em cultura, a equipe realizou análises filogenéticas detalhadas, revelando que o novo vírus ocupa uma posição basal dentro do gênero Morbillivirus — ou seja, é evolutivamente mais próximo do ancestral comum do que das linhagens modernas, como o sarampo. Isso oferece pistas importantes sobre a origem e evolução desses patógenos.

Risco potencial

Embora os testes tenham mostrado que o vírus não infecta facilmente células humanas, ele é funcional e teoricamente capaz de se adaptar, especialmente em ambientes onde há contato com outros vírus, o que aumenta o risco de recombinação. Como os morcegos são hospedeiros naturais de diversos patógenos e convivem próximos a animais domésticos e humanos, o potencial de emergência de variantes com risco pandêmico não pode ser descartado.

“A presença de morbilivírus em morcegos não representa uma ameaça imediata. Mas a impossibilidade de estudá-los por falta de modelos experimentais era uma lacuna grave. Agora, podemos investigar sua biologia e nos preparar melhor para riscos futuros”, reforça Angélica Campos.

A pesquisa também chama atenção para a importância da ciência latino-americana na vigilância de vírus emergentes. As áreas de coleta — com alta biodiversidade e crescente degradação ambiental — são consideradas zonas críticas para eventos de spillover, quando um vírus salta de seu hospedeiro natural para novas espécies, incluindo humanos.

Mulher adulta, cabelos castanhos e longos. Usa camisa preta e uma corrente dourada com pingente de morcego. Está em ambiente de laboratório

Angélica Almeida Campos – Foto: Reprodução / Canal USP

“A fragmentação de hábitats aproxima espécies que antes não interagiam, criando condições propícias para a emergência de novos vírus” – Angélica Campos

As análises evolutivas indicam que saltos entre espécies, como de morcegos para porcos e macacos, ocorreram diversas vezes ao longo da história evolutiva dos morbilivírus. Dados obtidos no estudo reforçam a hipótese de que os morcegos são espécies-chaves na disseminação de morbilivírus entre diferentes espécies de mamíferos. Essa capacidade de mudar de hospedeiro reforça a urgência de fortalecer a vigilância viral em áreas de alta biodiversidade.

Reconhecimento internacional

O impacto da descoberta foi reconhecido pela própria revista Nature Microbiology, que publicou um editorial ressaltando como estudos como este são fundamentais para que o novo Pandemic Agreement, aprovado pela Organização Mundial da Saúde em 2025, se concretize. O editorial defende o fortalecimento da ciência colaborativa, da abordagem One Health (Saúde Única – que integra saúde humana, animal e ambiental) e do investimento em vigilância viral como pilares para a prevenção de futuras pandemias.

O estudo vai ao encontro das pesquisas que Luiz Gustavo Góes atualmente desenvolve no Institut Pasteur de São Paulo, voltadas à vigilância de vírus zoonóticos e ao desenvolvimento de sistemas experimentais adaptados à biodiversidade local. Segundo ele, o trabalho na Charité mostrou que não basta detectar fragmentos virais — é preciso criar ferramentas específicas para entender seu ciclo completo.

“Um dos maiores desafios foi que os sistemas celulares convencionais simplesmente não funcionavam. Tivemos que reconstruir, passo a passo, um ambiente celular que imitasse o hospedeiro natural do vírus. Só assim conseguimos que ele se replicasse. Isso muda completamente a forma como pensamos o estudo de vírus emergentes, especialmente em regiões tropicais como o Brasil, onde há uma diversidade viral ainda pouco conhecida”, explica.

O artigo é assinado por uma equipe internacional liderada por Wendy K. Jo (primeira autora, Charité – Universitätsmedizin Berlin) e Jan Felix Drexler (autor sênior, Charité e Centro Alemão de Pesquisa em Infecções – DZIF), com participação de cientistas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, Universidade da Costa Rica, Universidade de Glasgow (Reino Unido), Instituto Friedrich-Loeffler (Alemanha) e outras instituições da América Latina e Europa.

A pesquisa foi financiada por agências como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação Alemã de Pesquisa (DFG), Centro Alemão de Pesquisa em Infecções (DZIF), além de outras entidades internacionais de fomento à ciência.

O artigo Ecology and evolutionary trajectories of morbilliviruses in Neotropical bats está disponível neste link.

*Da Assessoria de Comunicação do ICB. Adaptado para o Jornal da USP