O misterioso “silêncio” dos papagaios no principal dormitório coletivo do Paraná
A Ilha do Pinheiro, localizada dentro do Parque Nacional do Superagui, no litoral do Paraná, historicamente, foi um dos locais que mais reuniu indivíduos de papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis) nos estados em que a espécie ocorre. Ela é endêmica do Bioma Mata Atlântica, ou seja, em todo o mundo, só existe na Mata Atlântica e vive nas planícies litorâneas do sul de São Paulo (SP) até o litoral do Paraná (PR).
A Ilha do Pinheiro é conhecida por abrigar as maiores concentrações de papagaios da região. Em média, 34% da população contabilizada em cada ano da contagem da espécie, numa atividade também conhecida por “censo”, era registrada no dormitório do local. Em 2009, a equipe chegou a registrar cerca de 50% da população total de papagaios-de-cara-roxa do litoral do Paraná se abrigando na Ilha do Pinheiro, com avistamentos superiores a 2.500 papagaios apenas no local.
Neste ano, no entanto, no mais recente censo da espécie realizado entre os meses maio e junho de 2024, apenas 455 indivíduos, o que equivale a 8,6% do total da população, foram avistados se abrigando no local.
O “silêncio dos papagaios”
Elenise Sipinski, coordenadora dos projetos de fauna da SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental), instituição responsável pelas atividades do censo no Paraná, explica que, em conversas com moradores, a equipe percebeu-os preocupados com episódios que podem estar sendo responsáveis, ou contribuindo, para o cenário atual de diminuição dos papagaios.
“Eles relatam que notaram que os papagaios estão se deslocando para a Ilha do Pinheiro com menos frequência, e em menor quantidade nos últimos anos, e isso pode ter relação com o aumento de fluxo de embarcações com turistas na região , com o aumento de buzinas, som alto e até fogos de artifício próximos à Ilha. Esses fatores podem estar fazendo com que os papagaios não enxerguem mais a Ilha do Pinheiro como um local seguro para viver”, explica Elenise.
O entendimento sobre se o fato é algo isolado deste ano, ou se já vem ocorrendo há mais tempo, ainda é difícil, já que a última edição do censo ocorreu em 2019, quando revelou, no litoral do Paraná, onde ocorre a maioria da população, a existência de 7.493 papagaios, utilizando seis dormitórios coletivos entre Guaratuba e Guaraqueçaba. Em 2018, um ano antes, foram contabilizados 7.366 indivíduos nesses locais. A média se mantinha, mas, agora, o resultado se alterou significativamente.
Além da Ilha do Pinheiro, locais como a Estação Ecológica da Ilha do Mel e a Ilha Rasa (na Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba) também foram envolvidos nos trabalhos de contagem e apresentaram os melhores números da contagem. Neste ano, nos seis dormitórios coletivos, foram contabilizados 5.245 indivíduos. Mas os baixos números de papagaios avistados na Ilha do Pinheiro, entretanto, deixaram o índice de 2024 abaixo das expectativas.
Elenise explica que, em 2024, foi utilizada a mesma metodologia dos anos anteriores para fazer a contagem dos papagaios. “Fizemos quatro contagens nos períodos da manhã e da tarde, por três dias consecutivos, para selecionar os melhores registros, quando as condições meteorológicas estavam adequadas: sem vento, sem neblina e, preferencialmente, com sol. Em dias ensolarados e sem vento, os deslocamentos dos papagaios tendem a ser maiores e a visibilidade para os contadores é melhor. O cenário para a contagem este ano foi adequado e, mesmo assim, percebemos os índices muito abaixo, principalmente no dormitório da Ilha do Pinheiro, em relação aos anos anteriores”, diz.
“Esses números com os quais nos deparamos são um farol de atenção que se ascende. Os resultados provocam alguns questionamentos, como: quais os fatores que estão contribuindo para a diminuição de indivíduos usando o principal dormitório coletivo no litoral do Paraná? Quais são os novos locais onde os papagaios podem estar se abrigando? O que vem gerando a alteração de comportamento das aves? São perguntas que ainda precisamos investigar para responder, mas já existem suspeitas”, diz a técnica.
Elenise reforça, no entanto, que o esforço em busca de respostas só terá resultados efetivos se as pessoas que visitam a região colaborarem e respeitarem esse santuário, e se as instituições governamentais responsáveis pelas áreas protegidas no litoral do Paraná fiscalizarem e ordenarem o território de forma a evitar que o papagaio-de-cara-roxa, símbolo da Ilha do Pinheiro e da Mata Atlântica, seja ameaçado por perturbações que podem comprometer a manutenção da espécie na região.
“Ter o privilégio de assistir a uma revoada de papagaios-de-cara-roxa, acompanhada da intensa vocalização que eles fazem durante este momento, é algo lindo e singular. Mas, se os trabalhos para a conservação da espécie não encontrarem terreno fértil, sadio e adequado para serem realizados de forma coerente, isso pode comprometer a dinâmica e até a sobrevivência de uma população que usa a região há milhares de anos. O silêncio dos papagaios nos preocupa”, pontua.
Camile Lugarini, chefe do ICMBIO (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) em Antonina e Guaraqueçaba, diz que os resultados registrados também são fonte de atenção para a entidade, que já tem um plano de ação definido para agir em relação ao assunto.
“Vamos conversar com a comunidade, com pessoas do entorno da Ilha do Pinheiro, e também com as autoridades técnicas, para entender mais detalhes da situação. As percepções sobre as reduções do número de papagaios na Ilha do Pinheiro já chegam para nós com mais intensidade desde o ano passado. Estamos percebendo algumas lanchas se aproximando no local onde eles vivem mais intensamente. Como estratégia, utilizando recursos do TAJ Litoral, vamos investir mais em sinalizações náuticas, aumentar as rondas periódicas de fiscalização e também sinalizar melhor as Unidades de Conservação, para que, com isso, possamos trazer os papagaios de novo. E vamos fazer tudo isso até a temporada de verão, período em que há um aumento significativo no número de turistas, que precisam estabelecer práticas de visitação mais responsáveis”, diz ela.
Maria Cecília Rodrigues, Comandante da 1° Companhia do Batalhão de Polícia Ambiental (BPAmb), também reforça a percepção de que a alteração da presença dos papagaios na Ilha do Pinheiro vem ocorrendo de uns anos para cá. “Suspeitamos que eles possam estar migrando para locais mais tranquilos, sem tanta interferência de turistas, como a Ilha Rasa, por exemplo, mas isso ainda precisa ser investigado mais a fundo. Certamente, o aumento de pessoas nas proximidades da Ilha do Pinheiro vem sendo bastante definitivo para a construção deste cenário”, conclui.
Censo do papagaio
O censo do papagaio-de-cara-roxa é promovido no Paraná desde 2003 pela SPVS, com o apoio direto da Fundação espanhola Loro Parque. A parceria entre a Loro Parque e a SPVS teve início em 2005, quando a Loro Parque começou a apoiar ações de conservação do papagaio-de-cara-roxa, espécie para a qual a SPVS se dedica desde a década de 1990.
As contagens são realizadas no outono ou inverno, estações do ano onde há maior concentração de papagaios nos dormitórios. Existe uma dinâmica de ocupação dos dormitórios coletivos, usados como abrigo noturno, relacionada ao período reprodutivo. Na primavera e no verão, muitos casais permanecem próximos dos ninhos durante o dia e a noite, deixando de usar os dormitórios coletivos e retornando a partir de abril, muitas vezes acompanhados de seus filhotes.
Todos os dormitórios conhecidos no litoral do Paraná estão localizados em áreas mais remotas, em ilhas, no interior das baías de Guaraqueçaba e Paranaguá, com pouco fluxo de pessoas e nas porções onde a floresta se apresenta em melhor estado de conservação. Isso acontece porque os papagaios têm preferência por áreas com menos influência antrópica.
Ninhos artificiais
Implementado em 1998 no litoral norte do Paraná e executado desde 2013 também no litoral sul de São Paulo, o Projeto de Conservação do Papagaio-de-cara-roxa da SPVS contribui para a conservação da espécie no seu habitat natural, a Mata Atlântica, em consonância com o Plano de Ação Nacional (PAN) de Conservação dos Papagaios até 2023 e, atualmente, com o PAN das Aves da Mata Atlântica.
Os papagaios-de-cara-roxa constroem seus abrigos, preferencialmente, em árvores antigas, como os guanandis. Por meio dos esforços da SPVS de monitoramentos dos sítios reprodutivos da espécie, observou-se que o vento e a chuva derrubavam os ninhos, bem como a exploração de árvores de forma ilegal na floresta. E para suprir a carência de abrigos naturais, a partir de 2003, a instituição passou a instalar no Paraná, e posteriormente no estado de São Paulo, ninhos de madeira e PVC. O papagaio aceitou de forma muito positiva a ação de manejo, transformando a iniciativa da SPVS de incremento à reprodução em um verdadeiro sucesso. As aves se adaptaram tão bem aos ninhos que, atualmente a maioria dos ninhos instalados, nos principais sítios reprodutivos, são ocupados todos os anos pelos papagaios.
Isso contribuiu para que a espécie se reproduzisse mais e, a partir de 2015, a equipe técnica do projeto começou a registrar um número maior de aves usando os dormitórios coletivos (acima de sete mil papagaios), resultado sempre comemorado por indicar uma tendência de recuperação da população no litoral do Paraná.
Por anos, o papagaio-de-cara-roxa esteve na lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção na categoria “Vulnerável”. Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), atualmente está na categoria “Quase Ameaçada”. Na lista estadual paulista de espécies ameaçadas de extinção ocupa a categoria Vulnerável.
Entretanto, perturbações à espécie decorrentes de um turismo desordenado na região, sem limite de número de embarcações ou orientações em relação aos cuidados necessários durante a observação de aves na natureza e sem fiscalização para combater delitos, impacta, como vem acontecendo, diretamente na presença da espécie na região e isso preocupa a equipe que trabalha no projeto.
Toda a planície litorânea onde vive o papagaio-de-cara-roxa faz parte da Grande Reserva Mata Atlântica, uma área que reúne três milhões de hectares de floresta nativa, localizada entre os Estados do Paraná, São Paulo e Santa Catarina. O território é um importante patrimônio natural, cultural e histórico e um valioso e singular destino de turismo de natureza, nacional e internacional.