A sensação que muitos têm ao descartar o lixo, é que o problema está resolvido. É como se disséssemos, “isso não é mais comigo”
Oito sacos pretos empilhados na esquina confirmam: a noite no bar do seu Tibério apenas começou. São sacos grandes e cheios.
Vanessa está de olho neles e surge antes dos funcionários da limpeza. É boa de tato a Vanessa. Primeiro apalpa cada saco de lixo. Os dedos calejados “enxergam” o que é lata, garrafa, resto de comida, papel, canudo. Vanessa garimpa a sucata.
Numa mesa na calçada, um casal para de digitar seus celulares, interrompe também a degustação da picanha fatiada e do chope para perguntar ao garçom se ninguém vai impedir que a mulher suje a rua. O garçom não tem resposta e o casal volta à comilança.
Vanessa segue a trabalhar, já tem um saco repleto e ainda chucha outras latas e garrafas. Quando abarrota o segundo saco acomoda com cuidado em sua carroça, como um bem precioso, e vai embora nas sombras. Uma bandeira do Brasil tremula na parte de trás, onde também viaja um peludo vira-lata. O resto da sujeira lambuza a esquina.
Chega o caminhão, 2 homens de uniforme laranja e luvas grossas fazem a coleta. Parte do lixo cai dos sacos e a bagunça aumenta.
Até que numa noite seu Tibério dá a ordem: “a partir de amanhã vamos organizar a limpeza. Embalagens recicláveis nos sacos azuis e o resto nos pretos. Quando a moça que cata o lixo chegar, a gente dá o saco azul pra ela”.
Vanessa custa a acreditar que não vai mais cortar as mãos com cacos vidro e nem ter contato com restos de comida e coisa pior.
Seu Tibério, os garçons, a freguesia e a Vanessa saíram ganhando. Aliás, todos nós, habitantes do planeta.
Jamais entendi porque a coleta seletiva é quase ignorada por governos e sociedade. Será que em plena catástrofe climática ainda não despertamos? No prédio em que vivo os moradores acertaram que tudo que pode ser reaproveitado deve ser separado, limpo e descartado uma vez por semana.
Mas quando vou dispensar o lixo orgânico, descubro que o combinado não é cumprido. Tem lata junto com papel higiênico sujo, plástico e vidro no mesmo saco das cascas de ovo.
Não são apenas os meus vizinhos. Os aterros sanitários estão entupidos de embalagens que deviam estar na reciclagem. O que não é reciclado, mais cedo ou mais tarde, vai pro mar, daí pra barriga do peixe e depois pro nosso estômago.
O que chamam de lixo nem sempre é lixo. Casca de fruta pode virar adubo. Com jeito, o entulho da obra se transforma em calçamento de rua. E mais, o cocô do cachorro teria um destino melhor se fosse recolhido com papel e jogado no vaso sanitário e não embrulhado em plástico, inimigo cruel do meio ambiente. Os saquinhos biodegradáveis existem, mas ainda são minoria.
Vanessa, a moça da carroça, não é uma recolhedora de lixo. Vanessa é uma transformadora, que limpa a cidade e recicla a vida de todos nós, inclusive de quem não separa o lixo.
O luxo e o lixo se encontram num equipamento já comum nas calçadas mais ricas de São Paulo e de outras cidades. São lixeiras de aço galvanizado, enormes, polidas com lixa até brilhar. Os sacos ficam trancados lá dentro e só na hora da coleta o funcionário do prédio sai da cabine blindada e abre o cadeado.
O monstrengo prateado custa mais de mil reais na internet.
Encontrei Vanessa encarando a lixeira. A capixaba alta e esguia estacionou a carroça, passou a mão no aço reluzente como se fosse carro novo e falou pra quase ninguém ouvir.
“Não era melhor economizar esse dinheiro, separar as latinhas, plástico e tudo mais que tem valor e então dar para a gente reciclar, que nem fez o seu Tibério? Um condomínio grande desses, ia ser um tesouro”.
Um tesouro de luxo, Vanessa.