CEMADEN sobre Rio Grande do Sul: “o problema é gigantesco e exige soluções em muitas frentes”
Fortes chuvas voltaram a castigar o Rio Grande do Sul em meio a um cenário em que os prejuízos do desastre de maio ainda estão sendo contabilizados
Fortes chuvas voltaram a castigar neste fim de semana o Rio Grande do Sul, principalmente a região metropolitana de Porto Alegre, com os níveis do Rio Guaíba voltando a subir e preocupar moradores e autoridades. Tudo isso, em meio a um cenário em que os prejuízos do desastre de maio ainda estão sendo contabilizados, e vêm tomando proporções gigantescas, tanto em perdas de vidas humanas e de animais, quanto em danos materiais.
Para um problema tão grande, não há uma solução única, mas sim a composição de diferentes soluções para questões específicas.
E podemos classificar essas soluções que atacam diferentes dimensões do risco climático. Entre essas tipologias de soluções, quero destacar três: as que lidam com a redução da exposição da população e das infraestruturas (especialmente críticas); as que trabalham com redução das vulnerabilidades dos sistemas impactados (incluindo os sistemas sociais/humanos); e as que se referem ao aumento das capacidades institucionais.
A primeira dessas tipologias foca na redução da exposição dos sistemas impactados, sobretudo das infraestruturas e da população. Passada a tempestade, agora é preciso reconstruir, tanto as casas, para que as pessoas tenham onde morar e reestabelecer suas vidas; quanto as infraestruturas, sobretudo as de maior relevância para restabelecer o cotidiano das pessoas com dignidade, como recuperar e adaptar redes de distribuição de energia elétrica, saneamento e as estradas.
Mas essa reconstrução precisa ser feita de forma não convencional. Isso implica em deixar de lado as normas baseadas em dados de climatologias e estatísticas antigas, das décadas de 1960 ou 1970. Precisamos olhar para o clima atual, que já está mudando. Mas não somente isso: hoje temos condições de olhar também para dados do clima futuro, através de projeções climáticas, e também antever tendências sobre os eventos extremos e adaptarmos de forma antecipada.
Para conseguirmos reconstruir de uma forma inteligente, precisamos analisar esses novos dados de forma inovadora, numa visão que chamamos de adaptação à luz das mudanças climáticas. Precisaremos não somente olhar para novos parâmetros de análise, focados em um planejamento que permita infraestruturas e residências mais resistentes, mas também repensar a localização dessas novas construções, especialmente de forma harmoniosa com outras soluções de adaptação baseadas na natureza.
A forma de realocação do espaço urbano, perirbano ou rural precisa levar em consideração as áreas de atingimento que foram registradas neste evento excepcional, pois ele nos permitiu entender áreas atingidas que antes não eram consideradas nos planejamentos convencionais. Muitas áreas que foram atingidas este ano não eram consideradas em áreas de risco previamente mapeadas, porque convencionalmente estes mapeamentos consideram em sua concepção os eventos mais frequentes e comuns (normalmente até 20 anos de recorrência).
Os parâmetros desse desastre atual precisam ser considerados nos novos espaços urbanos e novos traçados de infraestruturas. Afinal, já sabemos que eventos extremamente raros que demoravam séculos para acontecer, já estão acontecendo de forma mais frequente e isso irá se intensificar ainda mais com o avanço do aquecimento global.
Vulnerabilidade dos sistemas: revitalização obrigatória das bacias hidrográficas
As vulnerabilidades são muitas, e podemos avalá-las em diferentes “dimensões”. Entre elas, destaco a vulnerabilidade social, que tem suas raízes em um modelo de desenvolvimento econômico que aumenta as desigualdades sociais e segrega os mais pobres. Esse problema não pode ser resolvido no curto prazo: normalmente, é preciso uma série de políticas públicas atuando ao longo do tempo para reduzi-lo. Este tipo de vulnerabilidade precisa ser olhado com atenção por outras agendas, como a do desenvolvimento sustentável, para que as desigualdades históricas sejam resolvidas ou ao menos diminuídas.
Olhando para ações de médio prazo, focarei então nas vulnerabilidades das bacias hidrográficas. A tempestividade com que as águas têm corrido até os rios e a rapidez com que eles têm extravasado tem relação direta com a saúde, muitas vezes precárias, das bacias hidrográficas.
É preciso rever códigos ambientais, ou ao menos garantir o cumprimento dos que já existem, permitindo a preservação e conservação da mata nativa e das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a eliminação dos processos erosivos. É fundamental também cobrar fiscalização e recuperação desses passivos ambientais em regiões de APPs.
Com a degradação ambiental, há o favorecimento do escoamento superficial. A água da chuva cai, mal se infiltra no solo e já escoa rapidamente – em questão de minutos ou poucas horas – para os rios, causando desastres.
Isso também está relacionado ao assoreamento. O manejo inadequado do uso do solo induz e acelera processos erosivos que, juntamente com o aumento do escoamento superficial, faz com que uma grande quantidade de sedimentos cheguem aos rios. Ao longo do tempo, eles vão ficando “mais rasos” e, consequentemente, será preciso menos chuva para que extravasem. Portanto, revitalizar as bacias é mandatório para que esse problema, que é crônico, seja atenuado, aumentando a resiliência ambiental do sistema como um todo.
Essa não é uma resposta de curto prazo, mas ações imediatas podem ser tomadas, como a dragagem dos locais mais críticos dos rios. Ainda não há estudos específicos sobre isso, mas as chuvas recentes no estado provavelmente causaram um assoreamento enorme, porque houve milhares de deslizamentos de terra na Serra Gaúcha, e esses sedimentos foram todos para dentro dos rios.
Capacidade institucional: fortalecimento de instituições para melhorar a preparação e resposta aos desastres
A terceira tipologia de soluções é a da capacidade das instituições que estão à frente da gestão do risco, como a Defesa Civil. No nível federal, essa gestão passa por órgãos como o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil e o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad).
Embora tenhamos um sistema federal bem articulado para realizar esta gestão e comunicação dos riscos, ainda é preciso fortalecer o sistema olhando para o nível estadual e municipal. Afinal, são as Defesas Civis estaduais e municipais que se mobilizam em seus territórios para implementar políticas de gestão de risco (ao longo do tempo, antes do evento) e disparar ações de preparação e resposta nos territórios potencialmente atingidos (pré-evento). O problema é que, no Brasil, as defesas civis locais são, na grande maioria das vezes, extremamente fragilizadas e com uma capacidade muito baixa para enfrentar eventos extremos.
É fundamental que essas instituições sejam fortalecidas se queremos criar a cultura do risco nas pessoas. Numa situação de iminência de desastre, as pessoas precisam confiar nessas instituições para que possamos atuar rapidamente e mitigar os impactos, sobretudo os danos humanos. E para isso, precisamos de insituições fortes, com efetivo, profissionais de carreira, infraestrutura, capacidade técnica, e com planos de contingência previamente estabelecidos com a participação das populações locais.
Mas há outras instituições que precisam ser olhadas com mais atenção, como as secretarias de meio ambiente dos municípios. A gestão pública, sob a ótica da eficiência da máquina pública, precisa ser levada em consideração.
A temática dos desastres recebe muito pouco valor nas discussões e, consequentemente, poucos recursos financeiros. Então, sem a melhoria da eficiência da máquina pública como um todo, não sobra dinheiro para ser direcionado para essas questões, que são tão negligenciadas. Portanto, a gestão pública precisa se tornar mais eficiente em todos os aspectos, para que mais recursos possam ser destinados a esta problemática.
Acredito que esse momento de comoção com o desastre do Rio Grande do Sul pode ser um grande divisor de águas, e espero que isso se reflita também na hora da população escolher seus representantes políticos, porque tudo passa pelas tomadas de decisão políticas, que precisam estar minimamente alinhadas com a solução desses problemas.
Gaúchos voltam a deixar suas casas, depois de chuva
Mudanças climáticas
Se fosse possível apertar um botão hoje e zerar a emissão dos gases de efeito estufa no mundo, ainda assim demorariam pelo menos 100 anos para o clima se restabelecer, dado todos os impactos que já causamos na química da atmosfera e nos oceanos, que são os grande reguladores da temperatura global.
No entanto, esta alegação não pode ser motivo para pensarmos que nada pode ser feito! De um lado, temos que tentar diminuir essas emissões o mais rápido possível, para que os cenários não sejam agravados ainda mais nas próximas décadas, e não prejudicarmos ainda mais as gerações futuras. Enquanto isso caminha, mesmo que a passos lentos, precisamos focar na adaptação, porque sabemos que a ocorrência de novos eventos extremos é inevitável, mas os impactos podem ser abrandados ao longo do tempo.
No início do século, falava-se de um exagero no “apocalipse climático” previsto por cientistas. Mas a ciência nunca se referiu a algo avassalador, que impactaria todos de uma vez só. Os alertas da ciência eram exatamente sobre a intensificação desses eventos extremos que, para alguns grupos sociais, em alguns territórios, até poderia se assemelhar a um apocalipse: afinal, imagine ser impactado por três grandes enchentes em seis meses, como aconteceu no Rio Grande do Sul, e ter que lidar com todas essas perdas e traumas?
Infelizmente, no Brasil esperamos desastres como esse acontecer para de fato agirmos com mais vigor. Em 2011 foi assim, após o grande desastre da Região Serrana do Rio de Janeiro, e de lá pra cá avançamos consideravelmente, mas ainda aquém do tamanho do desafio que temos que enfrentar.
Agora, com a intensificação dos eventos extremos se tornando uma realidade e materializando-se na forma de desatres, talvez seja o momento ideal para que as pessoas reflitam sobre todas estas questões e percebam que esse não é um problema para o futuro. Ele já começou. E somos parte tanto do problema quanto da solução.
Capacidade institucional: fortalecimento de instituições para melhorar a preparação e resposta aos desastres
A terceira tipologia de soluções é a da capacidade das instituições que estão à frente da gestão do risco, como a Defesa Civil. No nível federal, essa gestão passa por órgãos como o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil e o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad).
Embora tenhamos um sistema federal bem articulado para realizar esta gestão e comunicação dos riscos, ainda é preciso fortalecer o sistema olhando para o nível estadual e municipal. Afinal, são as Defesas Civis estaduais e municipais que se mobilizam em seus territórios para implementar políticas de gestão de risco (ao longo do tempo, antes do evento) e disparar ações de preparação e resposta nos territórios potencialmente atingidos (pré-evento). O problema é que, no Brasil, as defesas civis locais são, na grande maioria das vezes, extremamente fragilizadas e com uma capacidade muito baixa para enfrentar eventos extremos.
É fundamental que essas instituições sejam fortalecidas se queremos criar a cultura do risco nas pessoas. Numa situação de iminência de desastre, as pessoas precisam confiar nessas instituições para que possamos atuar rapidamente e mitigar os impactos, sobretudo os danos humanos. E para isso, precisamos de instituições fortes, com efetivo, profissionais de carreira, infraestrutura, capacidade técnica, e com planos de contingência previamente estabelecidos com a participação das populações locais.
Mas há outras instituições que precisam ser olhadas com mais atenção, como as secretarias de meio ambiente dos municípios. A gestão pública, sob a ótica da eficiência da máquina pública, precisa ser levada em consideração.
A temática dos desastres recebe muito pouco valor nas discussões e, consequentemente, poucos recursos financeiros. Então, sem a melhoria da eficiência da máquina pública como um todo, não sobra dinheiro para ser direcionado para essas questões, que são tão negligenciadas. Portanto, a gestão pública precisa se tornar mais eficiente em todos os aspectos, para que mais recursos possam ser destinados a esta problemática.
Acredito que esse momento de comoção com o desastre do Rio Grande do Sul pode ser um grande divisor de águas, e espero que isso se reflita também na hora da população escolher seus representantes políticos, porque tudo passa pelas tomadas de decisão políticas, que precisam estar minimamente alinhadas com a solução desses problemas.
Mudanças climáticas
Se fosse possível apertar um botão hoje e zerar a emissão dos gases de efeito estufa no mundo, ainda assim demorariam pelo menos 100 anos para o clima se restabelecer, dado todos os impactos que já causamos na química da atmosfera e nos oceanos, que são os grande reguladores da temperatura global.
No entanto, esta alegação não pode ser motivo para pensarmos que nada pode ser feito! De um lado, temos que tentar diminuir essas emissões o mais rápido possível, para que os cenários não sejam agravados ainda mais nas próximas décadas, e não prejudicarmos ainda mais as gerações futuras. Enquanto isso caminha, mesmo que a passos lentos, precisamos focar na adaptação, porque sabemos que a ocorrência de novos eventos extremos é inevitável, mas os impactos podem ser abrandados ao longo do tempo.
No início do século, falava-se de um exagero no “apocalipse climático” previsto por cientistas. Mas a ciência nunca se referiu a algo avassalador, que impactaria todos de uma vez só. Os alertas da ciência eram exatamente sobre a intensificação desses eventos extremos que, para alguns grupos sociais, em alguns territórios, até poderia se assemelhar a um apocalipse: afinal, imagine ser impactado por três grandes enchentes em seis meses, como aconteceu no Rio Grande do Sul, e ter que lidar com todas essas perdas e traumas?
Infelizmente, no Brasil esperamos desastres como esse acontecer para de fato agirmos com mais vigor. Em 2011 foi assim, após o grande desastre da Região Serrana do Rio de Janeiro, e de lá pra cá avançamos consideravelmente, mas ainda aquém do tamanho do desafio que temos que enfrentar.
Agora, com a intensificação dos eventos extremos se tornando uma realidade e materializando-se na forma de desatres, talvez seja o momento ideal para que as pessoas reflitam sobre todas estas questões e percebam que esse não é um problema para o futuro. Ele já começou. E somos parte tanto do problema quanto da solução.
*Pedro Camarinha é doutor em Ciências do Sistema Terrestre pelo INPE e especialista em Geodinâmica e Geologia de Desastres no CEMADEN
** Artigo originalmente publicado no site de divulgação científica The Conversation Brasil