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Entenda por que o aquecimento global também causa ondas de frio e deve piorá-las

Entenda por que o aquecimento global também causa ondas de frio e deve piorá-las

Suposta contradição usada por negacionistas para desacreditar mudanças climáticas é, na verdade, resultado do desequilíbrio provocado pelo aumento da temperatura do planeta

Se o aquecimento global existe, por que as ondas de frio não só persistem como têm sido mais severas? Talvez você já tenha se deparado com essa dúvida nas redes sociais ou visto este argumento ser usado por negacionistas para afirmar que as mudanças climáticas são uma farsa. Mas o que parece uma contradição é, na verdade, justamente uma consequência do aumento da temperatura média do planeta.

É consenso na ciência que o aquecimento global é causado pela ação humana e, ao desequilibrar as dinâmicas do planeta, tem resultado em uma realidade de contrastes em que o frio intenso e o calor extremo coexistem. Um Só Planeta ouviu especialistas para explicar por que isso ocorre e quais as tendências para as próximas décadas.

Como o aquecimento global causa frio?

Referência mundial em climatologia, o cientista Carlos Nobre diz que há uma explicação meteorológica para o fato de o aquecimento global estar resultando em ondas de frio intensas e por vezes “inesperadas” mundo afora. Isso ocorre, segundo ele, porque o aumento do calor no planeta tem provocado o derretimento do gelo nos polos norte e sul.

“A temperatura tem aumentado, e o jato polar, que era bem circular em cima dos dois polos e mantinha os ventos ‘presos’ em cima dessas áreas geladas, começou a ter altos e baixos. Tem horas que eles escapam e chegam até outras latitudes, o que resulta na ocorrência de eventos de frio mais intenso em determinadas regiões”, afirma.

Conforme Nobre, o cenário atual não indica que este “escape” de ar frio ocorra o tempo todo, mas é um fenômeno decorrente do aquecimento global. “O gelo reflete de 50% a 60% da radiação solar. Quando ele derrete, o oceano reflete só 6%, e isso faz o aquecimento ser ainda maior. Antes, o jato polar ficava mais concentrado nos polos, mas isso mudou a partir do derretimento que tem sido registrado”, pontua.

Coordenador de política internacional do Observatório do Clima, Claudio Angelo chama a atenção para outro fenômeno causado pelo aquecimento global que pode resultar em frio extremo em certas áreas do planeta: o risco de ‘desligamento’ da chamada Corrente do Golfo, uma corrente marítima que leva calor da região tropical para o hemisfério norte.

“É por conta dela que regiões como Londres, norte da França e Alemanha têm temperaturas mais amenas mesmo estando em latitudes similares a locais congelantes como no Canadá. A previsão dos cientistas é que ainda neste século essa corrente possa reduzir muito ou até parar. O efeito disso seria uma redução drástica de temperatura em regiões como, por exemplo, a Europa”, explica.

Tempo X Clima

Angelo observa que um ponto-chave para entender os impactos do aquecimento global é diferenciar os conceitos de tempo e clima. Enquanto o primeiro é uma condição momentânea da atmosfera, como um dia de frio ou calor, por exemplo, o segundo leva em consideração a média de um período mais longo.

Esse erro de compreensão, na avaliação dele, é um dos motivos que leva muitas pessoas a duvidarem da existência do aquecimento global quando ocorrem ondas de frio. “Estamos falando de dimensões diferentes quando analisamos tempo e clima. Embora a gente vá ter menos episódios de frio extremo no futuro, diante dos impactos no clima, isso não significa que o planeta deixou de produzi-los”, ressalta.

Mais dias quentes, menos dias frios

Angelo também pontua que, no longo prazo, a tendência é haver cada vez menos dias frios. “Há lugares que têm tido temperaturas muito acima da média no verão e, por outro lado, vêm registrando recordes históricos de neve no inverno. E isso são duas caras do mesmo fenômeno, ou seja, o extremo fica mais extremo de calor no verão e de frio no inverno. A mudança no clima aumenta o extremo nas duas pontas, embora os extremos de frio tendem a ficar menos frequentes com o passar dos anos”, afirma.

Nobre reforça que um dos efeitos do aquecimento global, ao lado da redução no número total de dias frios, são os recordes de temperatura cada vez mais frequentes. “Estão explodindo ondas de calor e isso tem causado mortes, além de efeitos como chuvas intensas e secas. Tanto que, nesta semana, muitas cidades brasileiras tiveram máximas acima de 40ºC e estamos no inverno”, salienta.

Projeções preocupantes

A velocidade do aquecimento global e suas consequências é, inclusive, uma das grandes preocupações da ciência. Uma análise liderada por cientistas do Instituto Goddard de Estudos Espaciais (GISS), da Agência Espacial dos Estados Unidos (Nasa), mostra que a temperatura média na Terra subiu pelo menos 1,1°C desde 1880. Ainda cita que os últimos nove anos foram os mais quentes desde o início dos registros.

Abaixo, gráfico elaborado pela Nasa mostra que, com o aumento das temperaturas terrestres desde 1950, os dias mais quentes se tornaram mais comuns no planeta:

Carlos Nobre ressalta que o aumento da temperatura do planeta tem ocorrido mais rápido do que os cientistas haviam previsto — em 2024, pela primeira vez, o mundo ultrapassou 1,5 ºC ao longo de um ano inteiro. “Se calculava que isso pudesse ocorrer em 2028, mas chegou cinco anos antes. E essa alta já ampliou a quantidade de eventos extremos, incluindo episódios como a chuva recorde no Sul e a seca na Amazônia”, pondera.

A situação é ainda mais preocupante, segundo ele, porque a humanidade nunca viveu em um ambiente com temperatura tão elevada. “Nossa evolução em milhões de anos não se deu com temperaturas altas, mas sim com necessidade de amenizar o frio. Se a temperatura do planeta subir 4ºC ou 5ºC, passará do limite suportável pelo corpo humano e não conseguiremos perder calor. Claro que é possível que as pessoas vivam em ambientes com ar-condicionado, mas é impossível imaginar isso na prática”, destaca.

Angelo, do Observatório do Clima, enfatiza que os cientistas costumam ser mais cautelosos do que alarmistas — e é justamente isso que reforça a gravidade das projeções sobre a crise climática. “Quando erram uma previsão, os cientistas geralmente erram para menos. A maior parte das previsões dos impactos climáticos feita décadas atrás se mostrou subestimada. Então, embora haja incertezas, a ciência tem sido mais conservadora do que temos visto ocorrer na realidade”, pontua.

Para combater o negacionismo e a descrença na crise climática, ele sugere comparar os alertas da ciência aos do mercado de investimentos. “No setor financeiro, há um discurso hermético, matemático, mas que não deixa de ser real. E quando a bolsa quebra, todos sentem no bolso. É o mesmo com as mudanças climáticas. Não é porque o tema é complicado que as pessoas não precisam entender, pois vai afetar a vida de todos. E entre 97% e 99% dos cientistas já têm muito claras quais serão essas consequências”, finaliza.